Quarta-feira, 8 Maio

Holy Motors: a dura vida dos cineastas mauzões


No meu apartamento há uma porta na qual nunca tinha reparado até agora“. A metáfora kafkiana usada por Leos Carax para explicar a abertura do seu filme é um começo perfeito: uma vez aberta a porta, o que se encontrará por aqui será um pouco de tudo, mas nunca certezas. Essa é a grande maravilha deste filme que tem encantado críticos e cinéfilos desde o Festival de Cannes, quando foi exibido pela primeira vez. E uma porta que o enfant terrible do cinema francês levou treze anos para abrir – sempre encurralado entre dificuldades de financiamento.

Para resumir (bem resumido), um ator, monsieur Oscar (Denis Lavant, magistral) segue dentro de uma limusina por Paris, a encarnar diferentes papéis e a meter-se em situações estranhíssimas. Não se sabe quem assiste-o, quem o paga (embora num dado momento parece que alguém o faz) nem tampouco qual é o seu propósito. Uma vez aberta a caixa de Pandora (o homem sai do seu quarto por uma abertura na parede do seu quarto, na cena inicial – inspirada por um conto de Hoffman), “Holy Motors” consegue o que pouquíssimo cinema o faz hoje em dia: tirar o chão ao espectador, metê-lo num sonho (ou pesadelo), sem que a falta de razões torne menos instigante tentar descobrir que raio, afinal, se está a passar.

A história de “merde”

A par de alguns “dramas” mais corriqueiros, a encenação de maior impacte é a da personagem Merde, vinda de uma curta-metragem com a qual o cineasta participou da coletânea “Tóquio!” (de 2008, ao lado de Michel Gondry e Bong Joon-ho). Um ser que habita os subterrâneos e quando vem à superfície faz coisas… inclassificáveis. Uma sequência alucinada e, com seu final envolvendo a modelo Eva Mendes, a mais bela do filme. 

Sobre Merde disse Carax ao diretor dos Cahièrs du Cinema: “Holy Motors nasceu da minha incapacidade de prosseguir com vários projetos, todos eles noutra língua e noutro país. Todos esbarraram contra dois obstáculos: casting e dinheiro. Aborrecido por não conseguir filmar, utilizei ‘Merde’ como inspiração”.
 
 

Mas quem, afinal é aquele ser terrível e odioso? “Monsieur Merde é o medo e a fobia. Também a infância. Ele é a grande regressão do pós-11 de setembro (terroristas que acreditam em histórias de virgens no paraíso, líderes políticos satisfeitos porque finalmente conseguem dar uso aos seus máximos poderes, como crianças omnipotentes. E pessoas confusas, como órfãos perdidos no escuro). Monsieur Merde é o estrangeiro extremo: o racista imigrante.”


O cataclismo das máquinas e a escravidão virtual

Desde o título até certas passagens, a obra trata da substituição do mundo da máquina, que tanto assombrou os nossos antepassados do início do século XX, por um mundo invisível e marcado pela virtualidade. Diz Carax: “As limusinas estão em total sintonia com os nossos tempos – ao mesmo tempo vistosas e saloias (…). Comovem-me. Estão ultrapassadas, como velhos brinquedos futuristas do passado. Marcam o fim de uma era, a era das máquinas grandes e visíveis.” Neste sentido, ” ‘Holy Motors’ é uma espécie de ficção científica, nas quais humanos e máquinas estão à beira da extinção, escravos de um mundo cada vez mais virtual. Um mundo do qual as máquinas visíveis, as experiências reais e as ações estão gradualmente a desaparecer“.
 
   

Estes comentários servem de preâmbulo para outra das cenas mais belas e enigmáticas do filme, quando Oscar entra numa fábrica de motion capture (tecnologia onde câmaras captam movimentos dos atores para os trabalhar em computador. Largamente utilizado na animação, onde substituiu as técnicas tradicionais). “Na cena em que o Denis Lavant está coberto por sensores brancos ele é como um trabalhador especializado em motion capture. Não muito distante de Chaplin em “Tempos Modernos” – exceptuando o facto de que o homem já não está preso nas engrenagens da máquina mas nas malhas de uma rede invisível.” 


Monsieur Oscar

O homem das mil faces de “Holy Motors”, monsieur Oscar, é vivido por Denis Lavant é um ator com formação teatral que entra em todos os filmes de Carax, entre os quais “Os Amantes da Ponte Nova”. Além deles, entre os seus principais filmes estão “Beau Travail”, de Claire Denis, e “Mister Lonely”, de Harmony Korine. Este ano já passou pelos ecrãs portugueses com uma participação em “Eu Não Sou A tua Princesa”. 
 
Curioso é o elenco do seu outro trabalho de 2012, exibido no Festival de Torino e sem data de lançamento: Iggy Pop, Tchéky Kario e Béatrice Dalle participam de “L’étoile du jour”. Entre os seus novos projetos encontra-se ainda “Michael Kohlhaas” (com Mads Mikkelsen e Bruno Ganz).


Kylie Minogue e Eva Mendes

Duas surpresas no elenco da obra são as presenças de Kylie Minogue e Eva MendesDa cantora Kylie Minogue o cineasta conhecia evidentemente o nome – mas nada mais que isso para além da parceria que fez com Nick Cave nos anos 90. Minogue entrou no projeto por intermédio de outra cineasta, Claire Denis, que a indicou para mais uma das obras não realizadas do realizador – esta prevista para acontecer em Londres. No final, curiosos elogios: “A Kylie é a própria pureza. Filmar com ela foi a experiência mais delicada e amável que tive num plateau.
 
 

Já o papel de Kay M. não foi pensado para Eva Mendes, mas para Kate Moss – para o nunca realizado (mais um…) “Merde in USA” – onde a terrível personagem comporia com ela uma espécie de “A Bela e o Monstro”. Carax conheceu Mendes num festival e daí surgiu a parceria. O veredito: “Ela é simultaneamente erótica e robótica”.
 
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Realizador: Leos Carax
Elenco: Denis Lavant, Édith Scoob, Eva Mendes, Kylie Minogue, Michel Piccoli. França/Alemanha, 2012. {/xtypo_rounded2} 

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