Domingo, 12 Maio

13º Festival Lumiére: A viagem ao cinema da memória

De Jane Campion a Kinuyo Tanaka e de Bertrand Tavernier a Sidney Pollack

O Festival Lumière acabou, viva o Festival Lumière!

Sim, terminou no passado domingo, dia 17, a 13ª edição do Festival Lumière (de 9 a 17 de Outubro), numa tremenda programação do cinema enquanto património fílmico clássico (e restaurado). Um prazer que o mui aficionado público lyonais pode renovar e recuperar, em virtude das muitas sessões esgotadas, no Best of Lumière 2021 agendado entre 20 de Outubro e 16 de Novembro.

Dias antes, no início do certame, avançámos de passo apressado e olhar panorâmico ao longo de um dos Cours principais da cidade de Lyon – primeiro o Gambetta, depois o Albert Thomas -, sabendo de antemão que essa artéria nos conduziria ao Institut Lumière, portanto, à Village e, claro, à Rue do Première Film, local mítico do rendez-vous cinefilia. Assim se concretizava o sonho adiado de participar talvez na mostra mais interessante de cinema clássico, apenas ao nível da mostra de Bolonha (Il Cinema Ritrovato) ou de Pordenone (Le Giornate del Cinema Muto).

Por aqui, há pouco mais de 125 anos, os irmãos fotógrafos Auguste e Louis Lumière colocaram em marcha a aventura industrial e artística de projetar num ecrã inúmeros quotidianos sob a forma de pequenos filmes de um minuto. De um lado a mansão da família Lumière, também o ao museu Lumière, onde haveríamos de testemunhar algumas das relíquias deste verdadeiro berço do cinema, bem como o hangar de onde se abriu a porta da empresa de material fotográfico do pai, Charles Antoine, revelando a saída dos operários, em 1895. Talvez esta a mais famosa abertura de portas do mundo, estabilizando o formato que superou a fotografia e, gradualmente, impôs uma nova forma de arte, a sétima, como a definiu Ricotto Canudo, em 1917. Entretanto, uma outra história, bem mais breve, ocorrida em 1982, mas que não desmerece igual reconhecimento, está igualmente ligada a esse espaço pela iniciativa e ação de dois cinéfilos locais, o cineasta Bertrand Tavernier (desaparecido o ano passado, um mês antes do seu 80º aniversário) ao transformar esse espaço no Instituit Lumière, como seu presidente, bem como Thierry Frémaux, o seu dinâmico diretor (num cargo de acumula com o de diretor artístico do festival de Cannes). Razões de sobra para celebrar este regresso às salas com menos restrições (aqui quase sempre esgotadas), num evento a implorar pela ubiquidade que se confronta com a impossibilidade de absorver a tremenda oferta de tesouros do cinema.

Em Lyon, em vez da novidade, recupera-se o enfoque na divulgação e preservação do do cinema clássico mundial em cópias restauradas. Por exemplo, a sumptuosa abertura oficial da 13ª edição na Halle Tony Garnier, com espaço para quase vinte mil espetadores sentados, onde assistimos a “The Cameraman/O Homem da Manivela” (1928), de Edward Sedgwick, a filmar Buster Keaton (a correalização não está creditada e foi aliás o último filme onde teve controlo criativo) num dos seus melhores momentos e num dos grandes filmes sobre o cinema, onde o génio de Keaton trabalha o realismo e a ficção, de certa forma antecipando o que o russo Dziga Vertov faria, um ano depois, com “O Homem da Câmara de Filmar” (1929). Haveriam ainda dois cine-concertos (que já não vimos), “Casanova” (1927), de Alexandre Volkov, com o lendário Ivan Mosjukine, e ainda, “A Greve” (1925), o primeiro filme de Sergei Eisenstein.

Só mesmo a energia e empenho de Frémaux a dinamizar em Lyon o envolvimento que mostra em Cannes, ao longo de uma programação vibrante e suculenta que sugere um desdobramento impossível de manter ao longo das imperdíveis retrospetivas. A edição deste ano, dedicada à memória de Bertrand Tavernier, com os diversos espaços do festival (espalhados também por diversos cinemas da cidade) dominados este ano pelo rosto de Jane Campion, a personalidade do festival e merecedora do Prémio Lumière, bem como da retrospetiva integral da sua obra. E com a sessão de encerramento reservada para o momento de encher de novo na Halle Tony Garnier para ver O Piano, o filme de 1993 que consagrou pela primeira vez uma cineasta com a Palma de Ouro de Cannes.

Além de Campion, o outro evento foi (quiçá ainda mais valioso!) foi a revelação como cineasta de Kinuyo Tanaka, uma das estrelas do cinema clássico japonês, com a sua meia-dúzia de filmes marcantes (com destaque numa peça futura dedicada as estas duas cineastas). Neste espaço mais alargado ao feminino, ainda a presença da atriz americana Maggie Gyllenhaal, revelada emDonnie Darko (2001), de Richard Kelly.

Kinuyo Tanaka

Destaque obrigatório ainda para o olhar acutilante e sociológico para ‘A América de Sidney Pollack’, selecionando alguns dos melhores filmes deste prolífico realizador, de certa forma percussor do que se veio a chamar de New Hollywood, ou como a indústria respondeu do final dos ditames coercivos do Código Hays, em 1966. Incluem-se, desde logo “Chamada Para a Vida” (1965), o seu primeiro filme, após a sua carreira televisiva, bem como, naturalmente, Os Três Dias do Condor (1975), “Bobby O Cowboy Eléctrico” (1979),  As Brancas Montanhas da Morte (1972) ou “África Minha” (1985), entre alguns dos sete filmes de Pollack com o amigo Robert Redford. Ou, numa rima semelhante, a especial ligação do cinema popular do francês Gilles Grangier, com Jean Gabin, actor que integrou em nada menos de doze filmes (igualmente numa matéria desenvolvida numa peça futura).

O programa contemplava ainda diversos eventos celebratórios, como os 50 anos no nascimento do fenómeno blaxploitation, em 1971, com a exibição de Sweet Sweetback, de Mario Van Peebles, e “Shaft“, Gordon Parks. A mesma efeméride se aplica à carreira de cineasta de Clint Eastwood, bem como os trinta anos de Van Gogh, de Maurice Pialat, a exibição da trilogia “Infernal Affairs”, de Andrew Lau e Alan Mak. Por fim, as aventuras de Antoine Doinel, celebradas no mais belo quarteto de filmes de François Truffaut. Ou ainda o trio de clássicos do horror japonês, com “Ring” (1998) e “Dark Water” (2002), de Hideo Nakata e “Audition(1999), de Takashi Miike.

Infernal Affairs”

Como vem sendo hábito no imenso programa do Festival Lumière, incluem-se ainda

clássicos do cinema em cópias restauradas. Oportunidade de ouro para ver ou rever obras valiosas de Leo McCarey (“Com a Verdade me Enganas”, 1937), Michael Powell e Emeric Pressburger (Sei para Onde Vou, 1945) ou Hou Hsiao-hsien (“Millenium Mambo”, 2001), entre outros. Tal como as homenagens, este ano, devidas ao sociólogo centenário Edgar Morin (autor do incontornável “Chronique d’um été” (1960), co-realizado com Jean Rouch, ao compositor Philippe Sarde, à actriz Bulle Ogier (“Céline e Julie vont em bateau“, uma obra central de Rivette, datada e 1974). Ainda Paolo Sorrentino (naturalmente, com passagem do recentíssimo (e autobiográfico) “È stata la mano di Dio” (2021) ou o ator Édouard Baer.

Paralelamente, espaço a exposições de fotografias, neste caso ao trabalho de Raymond Depardon, documentando as suas viagens pela América, em The Desert American, um tributo a Bertrand Tavernier, assinado com fotos de Étienne George, e ainda as fotografias de Nan Goldin, sobre a rodagem do tremendo Variety, no que se poderá considerar uma viagem travestida do olhar feminino ao ambiente do cinema porno novaiorquino. Ainda encontros de editores de DVD clássicos, como aquele em que assinala o lançamento da coleção de filmes de Kinuyo Tanaka, exibindo o behind the scenes intitulado “The Tanaka case”.

Apesar do relevo clássico da programação Lumière, o Festival abre também um espaço de filmes novos, onde se apresentaram alguns filmes do ano corrente em antestreia, como foram os casos, entre outros, de “Cry Macho“, de Clint Eastwood, “Vortex”, de Gaspar Noé, “Julie”, de Joachim Trier, ou “The Velvet Underground“, de Todd Haynes.

Como se percebe, um programa tão extenso quanto valioso (só mesmo compartável com a gastronomia local), colocando aos entusiastas desafios difíceis de cumprir.

Felizmente, existe um Best off do Festival Lumière. Viva!

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