Terça-feira, 23 Abril

‘Piedade’ chega aos cinemas brasileiros acendendo a pólvora de Claudio Assis

Tão provocante nas suas entrevistas e discursos quanto era em filmes como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), Glauber Rocha (1939-1981) dizia que existe uma distinção entre “realizador” e “cineasta”. Em sua lógica, “realizador é quem faz filme; cineasta é quem cria universos”. Claudio Assis, diretor pernambucano que, nos últimos 20 anos, foi quem mais deu gás a uma ferocidade quase glauberiana nas artes cinematográficas do Brasil, também acredita na máxima do baiano que dirigiu “Terra em Transe” (1967).

Muita gente faz filme; o que eu faço é cinema”, disse ele ao C7nema em 2006, quando o seu monumental “Baixio das Bestas” saiu do Festival de Brasília com o troféu Candango de melhor longa-metragem, meses antes de receber o Tiger Award de Roterdão, em 2007, e selar a carreira internacional do seu artesão, um dos mais autorais do seu país.

Durante o movimento chamado Retomada (1995-2010), termo usado para designar o ciclo de produções fomentadas por leis de incentivo, oriundas do fecho da Embrafilme, órgão de apoio e difusão de curtas, médias e longas-metragens em terras brasileiras, Assis usou cada tostão captado para arquitetar um universo particularíssimo, erótico, violento, de olhos esbugalhados pela exclusão social. Selvagem em sua arrancada nas telas, com “Texas Hotel” (1999), a sua filmografia foi dosando som e fúria filme a filme, como “Febre do Rato” (2011) e “Big Jato” (2015), até chegar à maturidade plena com “Piedade”, que vai estrear no dia 5 de agosto comercialmente nas salas brasileiras, após um longo tempo de espera devido à pandemia.

O sentido que todas as longas-metragens de Assis têm: o gregarismo, a habilidade de unir espectadores por sua esbravejada inquietação diante das paralisias e inércias. Como Glauber tinha.

Existe um tubarão nesse seu novo trabalho, um animal que virou sinónimo de morte nas praias do Recife, a Estrela de Belém de Pernambuco, estado de onde vieram algumas mais poéticas expressões de brasilidade, como “Aquarius” (2016). Tubarão é também um signo cinéfilo de ordem capitalista, a se julgar pela criatura marinha do “Jaws” (1975), de Spielberg, que deu uma nova ordem aos códigos hollywoodianos num momento de reforma ética e estética naquela indústria, criando, com a sua bilheteira mastodôntica, um conceito de blockbuster, um conceito financeiro que passou a reger as entranhas do cinema.

O tubarão de Assis é Aurélio, que devasta a concorrência como “Jaws” fez. É uma máquina de matar harmonias familiares. É “o” papel de Matheus Nachtergaele, na sua mais luminosa atuação) nesta década. Mas é uma atuação gloriosa que vem de uma carpintaria que já atingira um estado de maturação em “Big Jato”, um filme menos lembrado e festejado do que deveria.

 
Mais pop que as longas-metragens anteriores do cineasta, “Big Jato” segue as viagens do camião que lhe dá título, inspirado pelo romance homónimo do jornalista Xico Sá. Na tela, as andanças dão-se pela paisagem da cidade alegórica de Peixe da Pedra. Parceiro de Assis numa curta-metragem feita há duas décadas, o fotógrafo Marcelo Durst (de “Estorvo”) acompanha o cineasta nessa empreitada em locações em Vila de Cimbres, Pernambuco, para dar carne a um universo de descobertas sexuais e emocionais – sem as quais não haveria “Piedade”. Já em estado de graça, Nachtergaele conseguia, lá, reinventar as suas próprias ferramentas cénicas interpretando os irmãos Francisco e Nelson. O primeiro é um camionista bruto, com paixão pela cachaça, e o segundo, um radialista anarquista. Os dois, cada um à sua maneira, vão contribuir para o processo de amadurecimento do jovem Xico (Rafael Nicácio), filho de Francisco e sobrinho de Nelson, criado, como eles, sob o impacto dos acordes dos Betos, uma banda na moda Beatles, cujo hit é Let It Lie.   


Espécie de fábula nordestina, “Big Jato” é resultado da maturação que Assis passou ao falar de modo lúdico sobre o desejo em “Febre do Rato”. Ali ele fez uma passagem das entranhas da denúncia para o jardim da contemplação. Mas era um filme de tráfego, de transição, de espumas, não de bílis– a sua matéria por excelência. Aqui, estamos diante de um porto de chegada, sólido. Esta nova longa-metragem dialoga com a obra de Fellini, evocando “Amarcord” (1973), pela maneira como trança sonho e realidade num espaço narrativo imaginário atemporal –meio anos 1970, meio atualidade, pela presença do celular e pelas citações ao craque argentino Lionel Messi – e pela fauna de tipos exóticos. O menino Xico cresce entre versos e a vontade de beijar uma menina que trabalha numa loja do seu vilarejo, enquanto ajuda o pai a retirar os dejetos das fossas locais. Tudo isso é narrado com a sensualidade habitual de Assis, mas com doses fartas de mel.  Em “Big Jato”, ele esquadrinha um ensaio sobre lealdade, discutindo o preço de nos mantermos leais à família e a ruptura que é optar por ser leal a si mesmo e escolher crescer.

 
Lealdade… eis a palavra que parece esgotada no projeto de Brasil de Aurélio, o Gordo Gekko que Nachtergaele cria, tão feroz quanto o Gekko de Michael Douglas em “Wall Street” (1987). É pelo litoral de Piedade, cidade que nome ao filme, que ele ataca, no roteiro escrito por Anna Francisco, Dillner Gomes e Hilton Lacerda e dele saem pérolas como “E sexo fede desde quando? Sexo é cheiroso”. Nele, a tal praia com nome de sentimento é alvo do apetite da corporação para a qual Aurélio pede a bênção – e da qual disfarça sua homoafetividade. A sua mãe também parece não poder saber de sua orientação sexual, como comprova um dos crocantes diálogos entre filho e big mama, vivida por Denise Weinberg.

Essa figura materna não esconde a sua homofobia quando suspeita que homens sem camisa frequentam o quarto de seu filho. Mas apesar das carapuças de que se esquiva, Aurélio veste com prazer, no âmbito profissional, a máscara de predador. A sua presa preferida, com perfil de iguaria, é o exibidor Sandro, papel que faz Cauã Reymond passar, de uma vez por todas, aos altares do risco e da exuberância cénica. Se existe, em “Piedade”, um lugar de heroísmo, de virtude, esse lugar pertence a Sandro, que gravita pelo liberalismo do amor. A morada dele é um cinema pornográfico, onde reside a autoralidade mais fina de Assis, como o grande realizador que é: a sua obra, como uma vez definiu Nachtergaele, é sobre “como a gente trepa errado e sobre como a gente ama errado”. E trepadas raras vezes ganharam luz mais linda do que a iluminação empregada pela fotografia de Marcelo Durst para desenhar o tónus lírico da querência dos corpos de Assis.

Em geral, em seus filmes, as relações sexuais são associadas ora à brutalidade, ora ao revanchismo (como o fio terra com uma escova de cabelo em “Amarelo Manga”), ora à escatologia (como a urina numa banheira onde um poeta come mulheres idosas em “Febre do Rato”) ou ora uma expressão gráfica do sadismo. Em “Piedade”, o sexo ferve a banho-maria: é intenso, mas tem a beleza da cumplicidade. O sexo une Aurélio e Sandro numa beleza coroada pela hipocrisia de um e a coragem de outro. Aurélio pode seguir sendo tubarão porque esconde o seu querer, numa lógica submissa de homofobia e podridão moral. Sandro, por sua vez, assume quem é, tendo sido expulso de seu lar adotivo por isso. Mas não guarda mágoas. Ele é pura potência, pois deseja e obedece às suas vontades.


Existe, aí, no quadrante de prazeres e de cicatrizes de Sandro, uma parentela entre “Piedade” e o já citado Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), cineasta alemão, pilar essencial ao castelo do melodrama. Mas a parentela não se dá com o Fassbinder das obras consagradas (tipo “Lili Marlene” ou “O Casamento de Maria Braun”), mas sim o Fassbinder de “Roleta Chinesa” (“Chinesisches Roulette”, 1976) e o de “O Machão” (“Katzelmacher”, 1969). É o melodrama do azedume, com cheiro de repolho e rosas mortas… ou o cheiro do adstringente que Sandro encomenda para diluir o aroma de ejaculação em seu cinema pornográfico. Aquela casa de tolerância avinagrada a fotogramas lembra o cinema erótico retratada pelo filipino Brillante Mendoza em “Serbis” (2008), mas com um sotaque de Brasil. Um Brasil de erosões e de abandono: nele, a veia melodramática do filme de Assis vem à tona quando Sandro (numa apoteótica gestualização de Cauã) descobre ter uma mãe biológica. O seu desafio é procurar seu paradeiro. Um paradeiro em que Fernanda Montenegro nos ilumina.

Filho de Sandro, numa de suas experiências sexuais com mulheres, o jovem Marlon Brando (Gabriel Leone, de “Dom”), vai ajudar o pai a ir atrás desse passado, que se esconde no olhar Paul Klee de dona Carminha, personagem de Fernanda. Ela é a Hanna Schygulla de Assis. Hanna foi a diva de Fassbinder, com seus olhos trágicos. Há tragédia também nas pálpebras hoje nonagenárias de Fernanda, que marejam ao perceber um ataque do tubarão Aurélio, a seu recanto de céu.

Carminha lembra os traços pictóricos de Paul Klee pela alusão ao quadro “Angelus Novus”, o Anjo da História, que se esvai ao perceber que a Humanidade já imolou seus cordeiros por pecados veniais, sem cuidar dos mortais, sobretudo o da ganância. Klee também foi alinhado àquele pensamento de Glauber que abriu esse texto: “pintor é quem pinta quadros; artista é quem cria conceitos estéticos”.

Igualmente angelical é o escudeiro da velha senhora: seu filho on the rocks Omar, que Irandhir Santos esculpe com o cinzel da elegância. Ele é só ganancioso na busca por um irmão que se perdeu. E no folhetim fassbinderiano arquitetado por Assis, este pode ser Sandro. Há aqui uma novela da (re)conexão familiar, mas isenta dos códigos por vezes didáticos e reiterativos das telenovelas. Nas águas de Assis não há ondas que se repetem por estilo. Seu mar não é planície, ele é alquebrado, salgado, tempestuoso, mas sempre húmido… de queixas, de potência, de poesia.

Vale celebrar as vitórias que o filme colheu, na sua passagem pelo Festival de Brasília, há dois anos: a melhor direção de arte, para Carla Sarmento, que cenografa aquele mundo de excessos, e melhor ator secundário para Cauã, num trabalho magistral. Houve ainda o prémio especial do júri para Assis, por fazer de “Piedade” um azulejo a mais em sua construção de um Brasil de torpezas, mas levantes possíveis. Um levante que abraça a vontade de um ator como Cauã de querer ser mais… e conseguir.    

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