Domingo, 5 Maio

Para lá das Colinas: O mundo assombrado pelos demónios

Voichita (Cosmina Stratan) e Alina (Cristina Flutur) têm em comum um doloroso passado num orfanato e uma intensa relação na adolescência que terminou quando, após a saída da instituição, as duas seguiram caminhos diferentes. O de Alina levou-a a buscar melhores condições de vida na Alemanha, mas as saudades da amiga a trouxe de volta aos confins da Roménia – para encontra-la imersa numa esfera completamente diferente.

Voichita agora é uma freira num convento (na verdade uma pequena igreja sem pintura rodeada de barracos sem energia elétrica) de estrita observância – devotada a um amor a Deus contra o qual uma exasperada Alina nada consegue fazer. Ao mesmo tempo, suas crises histéricas/psicóticas, negligentemente diagnosticadas e tratadas pelo hospital público local, fazem com que vá ficando no convento, onde termina por ser um elemento desestabilizador com trágicas consequências.

O mundo assombrado pelos demónios

Os diabólicos comunistas passaram à história e uma parte da Roménia, após a queda de Nicolae Ceaucescu, em 1989, não pareceu muito interessada em apanhar o comboio do ocidente rumo a um “radioso” futuro laico. Antes pelo contrário: se a notória aversão dos vermelhos por todas as formas de religião sufocou como pôde os movimentos espirituais, o seu desaparecimento ocasionou uma verdadeira explosão daquele que é um dos mais arcaicos fenómenos do cristianismo ocidental: o monasticismo. Estes radicais formam um grupo dentro da religião cristã-ortodoxa praticada no país – uma linha dura tradicionalista que se opõe aos moderados que querem uma aproximação com os cânones ocidentais.

Segundo estimativas oficiais romenas, o número de mosteiros girava em torno de 100 no final da década de 1980: hoje chegam a 500. Foi num deles, localizado “para lá das colinas” (na localidade de Tanacu, próximo à fronteira com a Moldávia e a menos de 300 km de Bucareste), que ocorreu, em 2005, a estranha história que serviu de inspiração aos livros “Deadly Confession” e “Judges Book”, da jornalista romena Tatiana Niculescu Bran – que, por sua vez, estão na origem do filme. A igreja ortodoxa romena, aliás, apressou-se em tomar distância dos comportamentos dos radicais mal os eventos tornaram-se públicos e causaram enorme repercussão na Roménia. Também ficaram proibidas as orações, mostradas no filme, a São Basílio.

Muitos graus abaixo de zero

O set para reproduzir os locais onde se passa a história foi construído numa localidade nas montanhas a cerca de 100 km da capital. Como o realizador Cristian Mungiu queria filmar no inverno, a produção ressentiu-se de diversas dificuldades – incluindo filmagens numa temperatura abaixo dos 15 graus negativos e sempre a correr contra o tempo para aproveitar a escassa luz solar – que surgia às 9h e desaparecia às 15h. Outro pesadelo foi a neve abundante. “Nós sabíamos que ela viria, mas nunca nesta quantidade! Deve ter sido um dos piores invernos dos últimos anos na Roménia“, comenta. Atrasos no financiamento e sucessivas revisões no argumento completam o quadro de uma produção difícil.

Mungiu ficou interessado na história quando tomou contato com ela, assim como os seus conterrâneos, através dos jornais. Anos depois, enquanto divulgava o seu segundo trabalho, “4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias“, em Nova Iorque, conheceu Tatiana Bran – que lhe deu a conhecer os livros que tinha escrito após anos de pesquisa sobre os eventos reais de 2005.

Apesar desta premissa, o argumento original tentou afastar-se o máximo possível dos verdadeiros eventos (embora tenha muitas semelhanças) – pois o argumentista/realizador queria utilizar o ponto de partida para examinar questões como fé, intolerância, amor. “Mas aproveitei o espírito dos livros, principalmente no que se refere a não emitir julgamentos, apenas a relatar os fatos”, explicou.

Para além de Cannes

Cristian Mungiu relatou que as filmagens foram terminadas ao mesmo tempo que o filme era editado, num esforço considerável a fim de que “Para lá das Colinas” pudesse ser exibido em Cannes – onde faria parte da competição principal. Valeu o esforço: Stratan e Flutur dividiram o prémio de Melhor Atriz e Mungiu o de Melhor Argumento Original. A obra também conquistou o prémio máximo no festival de Mar del Plata, na Argentina. Além disto, o filme tem beneficiado de um consenso crítico mundial.

Notícias