Terça-feira, 16 Abril

Mais uma rodada: Thomas Vinterberg faz um brinde à amizade e exorciza o descontrole

Mais do que celebrar a merecida conquista do Oscar de melhor filme estrangeiro, no domingo passado, o cineasta dinamarquês Thomas Vinterberg passou a semana a responder a questões sobre o potencial remake americano de “Mais Uma Rodada” (“Druk/Another Round”), cujos direitos foram adquiridos nos EUA pela Appian Way, a produtora fundada por Leonardo DiCaprio em 2004.

Estima-se que a própria estrela de “O Lobo de Wall Street” assuma o papel celebrizado por Mads Mikkelsen no filme escandinavo, uma produção de 5,7 milhões de dólares que estreia esta semana em Portugal.

Vinterberg e Mikkelsen, colegas no aclamado “A Caça” (2012), estão em paz com essa hipótese de refilmagem. Mas os boatos fervem pelo facto da história de um frustrado professor de História que se reinventa após submeter-se a uma experiência etílico ter sido cerzida por uma tragédia pessoal do seu realizador. A filha dele, Ida, de 19 anos, morreu num desastre rodoviário (num acidente cometido por um motorista que estava a falar ao telemóvel) no início das filmagens.

Mikkelsen e Vinterberg nas filmagens de “Mais uma rodada

Apesar do luto, Vinterberg acreditou que precisava seguir a filmar e dedicar o projeto à jovem, num tributo póstumo. O resultado: a comoção das plateias por onde a longa-metragem passou. A sua primeira vitrina seria a Croisette, em maio de 2020, mas como a pandemia obrigou Cannes a adiar a sua competição, a carreira da dramédia ficou para o segundo semestre do anos passado e para os primeiros meses de 2021, começando pelo Canadá. Saindo de Toronto, onde colheu a sua primeira leva de elogios, foi ovacionada no Festival de San Sebastián. Saiu de lá com um prémio coletivo para os seus atores: Mikkelsen, Thomas Bo Larsen, Magnus Millang e Lars Ranthe.

No dia 12 de dezembro, veio uma quádrupla vitória nos European Film Awards, o “Oscar do Velho Mundo”, no qual conquistou os prémios de melhor filme, realização, roteiro e ator, para Mikkelsen. Tema de uma das sequências mais catárticas da carreira de Mikkelsen, a canção “What a Life”, gravada por Scarlet Pleasure para o filme, viralizou desde setembro, transformando-se num hit, ampliando a popularidade deste elogio à amizade.

A entrevista a seguir foi construída a partir de depoimentos dados por Vinterberg ao C7nema de 2009 a 2020, em Berlim, Cannes e San Sebastián, com a inclusão de trechos de uma troca por email quando “Festa” foi encenado no Brasil, em forma de peça teatral.

Os seus filmes anteriores, como “A Caça”, “A Comunidade” e mesmo “Kursk” são histórias sobre companheirismo, em que amigos apoiam-se mesmo em momentos trágicos. Qual é a dimensão estética da amizade no seu cinema?

A amizade é tudo para mim, na vida e nos ecrãs. Mais até do que a amizade, diria que o senso de grupo, de ajuntamento. Cresci numa comuna e, até aos 18 anos, não fazia ideia do que era estar sozinho. Quando integrei o Dogma 95, aquele movimento também tinha uma ideia de turma, onde filmávamos de mãos dadas. Sinto que um dos motivos que me levou a filmar “Druk” são certas coisas que perdemos, por racionalismos ou mesmo por um certo medo do risco, como a conexão com grupos e como a sensação de jovialidade. Mas não vejo essa perda como sendo uma condição dinamarquesa ou como um sintoma característico daquele grupo de amigos que retrato. Isso é universal.

Mikkelsen num dos momentos de “Mais uma rodada

Mas é curioso você fazer esse estudo no ambiente escolar, a mesma arena de “A Caça”. O que mais o fascina nesse espaço?

Os professores são heróis. O gesto de compartilhar conhecimentos, numa rotina pautada por uma repetição de procedimentos, é algo muito generoso. Em “A Caça” havia uma professora que tentava investigar os possíveis erros da personagem de Mads. Mas ela fazia-o para proteger as/os estudantes. Um jornalista disse-me no outro dia que falei pela primeira vez deste projeto em 2013. Isso significa que estamos nele há muito tempo. No processo da confecção do argumento, decidi que uma escola seria o cenário, porque esse ambiente colegial serviria bem como um espelho entre a minha geração e uma geração mais jovem.

Você mencionou o Dogma 95 e lá se vão muitos anos desde a consagração de “Festa” em Cannes. O que aquele movimento deixou de legado e porque acabou?

Se pensares que era um movimento de contestação de formas, que pretendia recusar os modelos antes estabelecidos, ele precisava de acabar antes que virasse, em si, algo modular também. O Dogma teve o seu lugar na História por despir o cinema da suas vaidades e permitir que uma nova geração de realizadores marcasse o seu nome na Escandinávia.

Hoje, há pessoas que procuram-me para fazer o “A Festa” no teatro. Em 2009, ela chegou a ser encenada no Brasil. Os projetos ficam de alguma forma. E existe um interesse para que eles ganhem outras formas. O movimento passou, mas as histórias ficaram. Permanecem também as inquietações individuais de cada um de nós com a arte.

Desde “A Festa” ponho a teste a capacidade das pessoas serem capazes de permanecer unidas numa situação de pura tensão. Toda a sociedade, mesmo a chamada “perfeita sociedade dinamarquesa”, tem um elefante na sua sala de jantar, adormecido ou não. Pode ser o elefante do abuso sexual, do alcoolismo ou do medo de perder. O papel que assumi como artista é desnudar o véu que encobre esse tal elefante e apontar a sua presença.

Mais uma rodada

Existe uma dor pessoal nesse projeto, que se traduz na dedicatória, no fim de “Druk”, à sua filha, Ida. Como foi filmar sob essa dor?

Este filme começou para ser uma história sobre uma amizade etílica e virou uma celebração da vida. Quatro dias depois de termos começado, soube da morte da minha filha e ficamos todos destruídos. Mas como ela amava o projeto, e estaria nele, como parte da escola, percebemos o quão importante era recomeçar e fazer este filme para ela.

Você disse em San Sebastián que o seu set foi “seco”. Como assim?

Embebedar alguém para que ela pareça bêbada em cena não é uma representação é um gesto de amadorismo. Eu tenho atores e eles sabem representar. E, para isso, não precisam beber, só atuar. E havia um ator ligado aos alcoólicos anónimos que está sóbrio há oito anos. Respeitamos isso, sem ter bebidas no set. Bebemos nos ensaios, para pesquisar certos efeitos. A questão essencial da representação é saber esconder algo que parece estar escancarado. Ao representar qualquer situação, um ator simula perceções da vida que são conscientemente perceptíveis, mas que podem ser dissimuladas. Estar bêbado, de certa maneira, é fazer algo parecido: é esconder.

Mas qual é a medida do risco?

Druk” não é um filme sobre o álcool e, sim, um filme sobre o descontrole. A paixão é uma forma de descontrole. Há uma força que brota e nos consome. Assinamos um contrato ao nos apaixonar-nos. Um contrato de entrega que não sabemos onde vai levar. Ao beber, assinamos um contrato com o descontrole, onde também não se sabe onde chegaremos.

Como foi construído o conceito de luz no filme, no processo da direção de fotografia?

Sturla Brandth Grøvlen, o meu fotógrafo, fez um filme recente muito bonito, chamado “Wendy”. Ele tem uma perceção muito acurada do elenco. Quando estávamos em situações de sobriedade, entre as personagens, a sua câmara movia-se com estranheza. Quando havia bebedeira, a câmara movia-se com mais leveza. Ele emulava o sentimento das personagens.

O que a perceção da vida em grupo trouxe de mais rico, ao longo de tantos filmes sobre conexões e lealdade?

A perceção de que é necessário saber detectar a solidão em ambientes coletivos de troca. Existe um conflito histórico, moral, entre o Amor e a Liberdade, que se dá num âmbito individual. Estamos a falar de doação diante de uma realidade que trabalha todo o tempo com a impermanência, que é a realidade dos sentimentos. Mas existe algo mais. A amizade entra aí.  

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