Quinta-feira, 25 Abril

Apaga o Histórico: um antivírus contra a dependência digital

Nenhum Ctrl + Alt + Del consegue apagar o sucesso de “Effacer L’Historique”(“Apaga o Histórico” em Portugal; Apagar o Histórico” no Brasil), uma investigação sobre as paranóias contemporâneas diárias, derivadas da dependência tecnológica, que além de arrastar 500 mil espectadores em França, conquistou uma vitória rara: dificilmente uma comédia sai de um festival como a Berlinale premiada, mas esta longa-metragem conseguiu o feito. Mais. Em Portugal estreou no LEFFEST e também saiu com uma distinção (Prémio Especial do Júri para Blanche Gardin pela sua interpretação).

Benoît Delépine e Gustave Kervern têm agora no seu currículo o Prémio Especial do 70º Aniversário do Festival de Berlim. Para a dupla de realizadores, essa conquista representa o reconhecimento de um projeto estético iniciado em 2004, com “Aaltra”: a observação das excentricidades que assumimos como pura normalidade.

Benoît Delépine e Gustave Kervern

O nosso humor vem da imprensa satírica francesa, de revistas como “Pilote” e “Hara-Kiri”, mas também passa pela tradição da comédia italiana, de forma que nos afastamos da tradição do humor teatral de França, sobretudo do vaudeville”, disse Delépine ao C7nema em entrevista por Zoom ligada aos eventos do Festival Varilux no Rio de Janeiro. “A sátira permitiu que nós olhássemos para as relações sociais e procurar uma expressão quase gráfica, como havia nas comédias do Primeiro Cinema, mas sem o medo da palavra”.

Recém-chegado ao circuito português, “Apaga o Histórico” ironiza frontalmente o vício nas redes sociais e a obsessão que hoje existe em torno de serviços guiados por centrais digitais. A sequência em que um dos mais hilariantes comediantes de terras francófonas, o belga Benoît Poelvoorde, entra em cena a resfolegar, no papel de um entregador/estafeta, rachou a Berlinale de tanto rir.  “Fizemos um filme juntos, com o Gérard Depardieu, que se chamava ‘Mamute’, e que foi a Berlim. Mas o Gustave, o meu velho amigo, gosta mais de ursos do que de elefantes. E como estava muito frio para que fôssemos a um jardim zoológico ver um, achámos que a Berlinale poderia nos dar um ursinho. E deu”, brincou Delépine, do alto de um silo de grãos, numa casa no sudoeste da França, nas margens do rio Charente. “Ficámos felizes do nosso humor ter sido compreendido pelos alemães. Tudo o que procuramos é levar às pessoas heróis que não sirvam de modelo, nem queiram dar lições. Os nossos heróis são apenas pessoas comuns com experiências de vida singulares. E engraçadas. Quando filmámos com o Depardieu, um dia mandomo-lo mergulhar num rio, para vivenciar a verdade da sua personagem, um homem rústico, do campo. Ele foi, sem pestanejar. Ele viveu aquilo. Mas somou àquela vivência uma experiência sensorial de memória afetiva, ligada ao pai. Essa experiência afetiva na primeira pessoa é fundamental no cinema que fazemos. O Gustave, por exemplo, é alguém que até hoje tem dificuldades para não se perder no metro de Paris. Vou fazer o quê?”.

Existe uma engenharia de “filme coral” (termo usado para estruturas narrativas com núcleos de personagens autónomos entre si) em “Apaga o Histórico”, seguindo, separadamente, as vidas de três amigos em estado de nervos: Marie (Blanche Gardin, em genial atuação), Bertrand (Denis Podalydès) e Christine (Corinne Masiero). Os três entram têm um surto diante das vicissitudes oriundas dos média e das parafernálias tecnológicas do dia a dia. Marie está a ser chantageada por um tipo com quem fez amor, pois ele filmou-a nua e em poses nada convencionais. Bertrand é incapaz de lidar com as cartilhas digitais dos aparelhos que não sejam os instrumentos que usa como chaveiro e removedor de tatuagens. Já Christine é uma dependente química de streamings, viciada em séries, que fez de “House of Cards” e “Game of Thrones” um analgésico paraa sua angústia de só receber notas baixas dos passageiros que conduz no seu Uber. Uma série de confusões vai baralhar a rotina do trio, que só procura a paz.


Estamos a passar por uma fase da História em que as pessoas estão imersas nos ecrãs dos smartphones, sem olhar para o mundo à sua volta. As pessoas estão conectadas e desconectadas ao mesmo tempo. Há muitas palavras, mas nem sempre elas dizem o que deveriam simbolizar. Nunca se escreveu tanto, na História da Humanidade, quanto nestes tempos, em que a web dá acesso a muitos textos, vídeos e muitas ideias. O problema é que nem sempre são experiências literárias ou exercícios artísticos. Há muita coisa que é só expressão, mas o conteúdo faz falta. Na maioria das vezes, o que temos são só julgamentos, são apenas expressões de vaidade ou de livre arbítrio, de vontade. Quando a minha parceria com Gustave, na realização, começou, fazíamos algo mais próximo do cinema mudo, gráfico, pois o mundo ainda comportava o silêncio. Hoje, quando tudo é excesso, fazemos as nossas personagens falarem, mas respeitando os respiros, as reflexões, as pausas. Não queremos julgamentos, queremos trocas, o ouvir o outro”, diz Delépine, que juntamente com Kervern também filmou o divertido “Saint Amour”, com Poelvoorde e Depardieu numa rota de vinhos.

Em 2012, Delépine e Kevern conquistaram a Cannes com “Le Grand Soir” mostrando dois irmãos de comportamento antagónico, vividos por Benoît Poelvoorde e Albert Dupontel. A passagem pela Croisette já era um indício de que os dois levam à comédia um traço particularíssimo de rejeição às convenções do humor europeu mais popular. A gargalhada, com eles, tem um tom de debate social. “Acabamos de levar um filme mais recente do que o ‘Apaga o Histórico’, a curta ‘Mords-Les’, com Brigitte Fontaine, para um festival em Valência, Espanha. Basicamente são 30 minutos de Brigitte a ofender as pessoas. Mas são ofensas que traduzem inquietações do dia a dia”, diz Délepine. “Não sei se as pessoas estão já prontas para um formato de comédia assim. Lá, em Espanha, correu bem. Vamos continuar a tentar”.

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