Sexta-feira, 19 Abril

Acácio de Almeida, Marie Carré e a luz: um triângulo amoroso para ver nos cinemas

Estreado em Locarno, exibido no Doclisboa, “Objectos de Luz” chega esta semana  às salas comerciais. Um pequeno filme, um gesto delicado, onde o aclamado diretor de fotografia Acácio de Almeida, juntamente com a atriz Marie Carré, olham para a luz e oferecem reflexões frequentemente existenciais. 

Imagens de mais de 150 filmes em que Acácio de Almeida imaginou e dirigiu a fotografia atravessam os nossos olhos, contando o espectador ainda com a presença de Isabel Ruth e Luís Miguel Cintra em dois momentos particularmente marcantes.

Foi em Locarno que nos sentámos à mesa com Acácio de Almeida e Marie Carré, abordando este “Objetos de Luz”, que se revela a primeira experiência dos dois na realização.

Como nasceu esta viagem, este filme?

Marie Carré: Eu e o Acácio vivemos juntos há muitos anos, mas descobri que, além de mim, tem uma amante: a luz. Além de ser um diretor de fotografia – uma catalogação – encontramos-nos na paixão por questões existenciais e essenciais. É onde entra a luz. Muitas vezes, ao longo das conversas, o tema surgiu, até porque falávamos de cinema, mas não me lembro o ponto, o momento em que tudo começou. 

Houve, porém, uma ideia luminosa que tive nos almoços que tínhamos na nossa pequena marquise. Conversas íntimas no sentido que tínhamos a liberdade de interrogar, de imaginar, de fantasiar. Foi então que gravei estas reflexões que o Acácio ia debitando.

Além disso, creio que já antes tinha o desejo de fazer um filme. Estive bastante tempo afastada por motivos de saúde e tinha em mim o bichinho criativo. E nasceu este desejo, mais meu que do Acácio, de fazer um filme. Ele sempre foi muito reticente em passar para o outro lado. Estava tão ao serviço do realizador, que não tinha desejo do outro lado. Creio que não lhe surgia na consciência ver-se como realizador. O Acácio é um animal que se domestica pouco a pouco. Um tigre, um leopardo que, pouco a pouco, ganhando terreno, se convenceu em levar as suas reflexões a um filme. As reflexões e alguma imaginação que ele já tinha. Posso dizer que as partes mais delirantes do filme são do Acácio. Depois, eu cosi. Escrevi e cosi isto tudo.

Com essas reflexões surgem imagens. Como foi a criação dessas imagens?

Marie Carré: Veio da imaginação, das conversas, um pouco como as crianças: “e se…fizessemos isto e aquilo”. Pouco a pouco fizemos o filme.

Existem momentos particularmente emocionantes, como aqueles em que a Isabel Ruth olha para si mesma. Ou o Luís Miguel Cintra? Como imaginaram esses momentos?

Acácio de Almeida: A figura central é aquele homem da luz, aquele senhor de idade que no fundo sou eu. Olhamos um para o outro e interrogo-me: todos esses senhores e filmes, nos quais existem pequenos traços de união, rimam com um pensamento daquilo que é a luz. A luz que vem do interior e do exterior. A luz que tudo revela. 

Marie Carré: No filme existia ainda o tema da realidade e o mistério. Quando escrevi o guião não conhecia a composição das cenas. Ela estava simplesmente a olhar para o espelho e nele via os rosto dos atores. A cena foi filmada e temos a Isabel a ver a Isabel. A atriz perante as suas personagens. Este tema toca-nos particularmente, e vai ressurgir durante o filme na questão do que é a realidade.

Acácio de Almeida – Têm também a ver com a prisão. No fundo, todos nós vivemos aprisionados com toda a quantidade de informações que recebemos. Não há uma clareza total de inocência ou visão do mundo. Vivemos com as informações que temos. Há um momento em que o cinema é uma prisão, na forma de aprisionamento das imagens, daquilo que somos. E são também as nossas recordações que nos acompanham. As que ficam para sempre.

E esse fascínio pela luz, quando começou?

Acácio de Almeida – Durante muitos anos, foi por causa de fazer muitos filmes e cada vez descobria coisas novas na luz. Formas de expressão e até o que a luz descobria em mim. E isto não vinha apenas da cena que se estava a preparar, mas também à posteriori, quando ia para casa. Eram descobertas diárias que nos levam a ter uma outra ponderação sobre a luz.

Marie Carré– Sim, mas sei que tens memórias visuais da tua infância ligadas a isso….

Acácio de Almeida – Sim, tenho. Nasci na Beira Alta e não havia eletricidade. A fogueira era a base central de luz . Na minha casa existiam aquelas candeias de azeite, mas havia outra que dava uma luz muito branca (petromax) e sugeria um sol. E existiam aquelas labaredas da lareira que dançavam e rodopiavam pela chaminé com o vento. Ligado a isso, as histórias que a minha mãe contava. Há uma magia nisso.

Marie Carré– É um fator afetivo…

Acácio de Almeida – Sim. As memórias da minha mãe contar histórias e chegar o meu pai, que caçava, com os cães e uma barulheira infernal contra a porta. Coisas delirantes que aconteceram e ficaram na minha memória. Aquilo era um filme de terror (risos). 

E tenho memória da primeira vez que vi uma projeção. Era um projecionista ambulante. Lembro-me que era uma máquina que nunca tinha visto, muito pequenininha. Parecia um brinquedo e usava-se uma lâmpada automóvel, pois não havia eletricidade. Aquilo era mágico. Ele cantava, dançava, parava a imagem. Era uma beleza rara. Bobines de 15, 20 metros. Quando chegava ao fim, voltava para trás. Tudo aquilo foi um fascínio para mim.

E as reflexões que ouvimos. Foram gravadas. Nunca as passaram para o papel?

Acácio de Almeida – Pode ser que aconteça. Existe muita coisa, muitas reflexões sobre cinema. Quando fiz o “Cidade Branca”, muita gente veio a Lisboa e, sem conhecerem nada, questionaram onde foram as filmagens. O tema e o imaginário que circulava no tema era uma busca de jovens daquela altura em ir para um sítio raro sem nada atrás e seguir a intuição, o instinto. Mas quando comecei a ver os décors dei-me conta que eles não existiam. O décor é o espaço cénico que é feito. Estas reflexões estão no filme. O que é o espaço de filmagem, o que é o espaço cénico? O décor só existe naquele momento. Depois, seguimos para outro. Chegamos a um sítio com a câmara e é desenhado o espaço cénico com o quadro, e dentro desse quadro está o ator, com tudo o que há dele. É uma arte do instante, do momento.  É a magia.

Acompanhando todas as transformações que o cinema tem sofrido nos últimos anos, como diretor de fotografia, como vê a chegada de todas estas plataformas de exibição? E como é ver as pessoas a assistirem a filmes nos telemóveis…

Acácio de Almeida – Existem aspetos positivos e negativos, mas também coisas que ignoramos ainda e que o tempo irá determinar. O cinema de projeção em sala pode desaparecer, ou estará em grandes dificuldades. Passará para as nossas casas, os telemóveis ou ecrãs cada vez maiores. Talvez seja em paredes tácteis que serão autênticos ecrãs. Isso será, talvez, uma forma de nos preservar em casa, de nos centralizar, de passarmos a maior parte do tempo em casa. Teremos uma vida muito sedentária, levando isto ao extremo. Mas ao mesmo tempo é giro. Porém, não é a mesma coisa. 

As salas foram crescendo, as intensidades também, e as luzes igualmente. O tamanho dos ecrãs também. Com o som aconteceu a mesma coisa. Hoje em dia, o som é de um fulgor e espetacularidade muito grande.

 O cinema foi construído primeiro como passatempo, entretenimento, algo inédito. Viu-se que dava dinheiro e cresceram as salas. O cinema gerou uma indústria de tal maneira grande que em alguns países chegou a ser a principal. É assim natural que ele continue sob outras formas de exploração, como agora sob o digital. Mas no futuro surgirão outras formas de transmissão. Inclusive, já podemos ver filmes nos óculos. Quem sabe se no futuro podemos ver interiormente, a outros níveis sensoriais. 

Marie Carré– Mas achas que estas plataformas de streaming podem acabar com as grandes projeções em espaços públicos?

Acácio de Almeida: Sim, há uma tendência para isso.

Marie Carré: Eu acho que não…

Acácio de Almeida: São gerações. Esta geração é a assim, a próxima vamos ver.

Há quem diga que o cinema se vai transformar em algo como a Ópera…

Acácio de Almeida – Sim, o cinema perde a sua assiduidade e passará a ser um evento. E isto se conseguir ainda fazer dinheiro e cativar as pessoas, senão pura e simplesmente desaparece. 

Houve o preto e branco, houve luto ao preto e branco com a chegada da cor. E agora há este digital. E pode haver três dimensões, imagens holograficas, etc. Nada está fora das capacidades da imaginação do homem.

Pegando na frase que a Maria disse, que o Acácio nunca pensou em passar da fotografia para a realização, como comenta isso?

Acácio de Almeida – Nunca pensei nisso. O que fazia, fazia com gosto. Sempre fui alguém muito manual, gosto de fabricar. Quando era miúdo tinha um canivete e fazia os meus brinquedos. Desenvolvi assim uma atividade manual imensa, ou então já nasci com ela. Quando tive oportunidade de estudar, desenvolvi outras faculdades, mas as minhas primeiras manifestações de aptidões foram na pintura. Gostei também do teatro. 

Quando vim para Lisboa tive a oportunidade de fazer cinema e foi ele que determinou eu seguir a fotografia. Naquele tempo, havia pouca gente no cinema em Portugal. Foi o Cunha Telles que organizou, junto com o IDHEC, um curso de cinema no país. Ele tinha acabado de estudar no IDHEC, queria fazer cinema e não havia cá ninguém. A melhor forma para ele foi criar uma escola. 

A maioria das pessoas estava interessada de forma mundana no curso, no entretenimento, e muitos abandonaram esse curso logo no primeiro ano. Na altura, eu já fazia cinema amador, mas fiquei e comecei a trabalhar com ele. Foi aí que surgiu “O Cerco”. Antes disso, trabalhei com o (António)  Macedo. Na época não existiam grandes produções, mas haviam algumas coproduções, que estavam na mira do Cunha Telles. Foi um esforço heróico o que o Cunha Telles fez e, aos poucos, surgiram novas gerações de cineastas. 

Ele faliu umas quantas vezes e foi numa dessas falências que nos juntamos umas quantas vezes para fazer “O Cerco”. A Maria Cabral era secretária do Cunha Telles. Eu era contratado para fazer a fotografia. Não havia dinheiro, mas havia o gosto e a vontade de fazer cinema. É isto tudo que ficou na memória e gerou a vontade de trazer isso de volta neste filme.

E qual é a sensação de estar num festival numa posição de realizador. Certamente já passou por muitos como diretor de fotografia. O que é diferente agora?

Acácio de Almeida – Fico um bocadinho incomodado. Bem, não é incomodado, mas insatisfeito. Penso no que é que está aqui. Tem algum valor o filme estar a ser projetado aqui? Fundamentalmente é isso. Não era um grande desejo: “ah, estar num festival…”. Quando fiz filmes dediquei-me sempre muito a eles. Entregava-me, dava-me, participava como podia. Algumas vezes isso teve algum interesse e valorizou-me. Mas se é festival, sim, é uma recompensa…

Marie Carré– E um reconhecimento…

Acácio de Almeida – Sim, mas para mim o prazer é o fazer, não é estar aqui. Agora o filme está feito e queria emendá-lo. O filme é para nós que o fazemos, é um desejo interior, mas é como um livro. Precisa ser lido

Marie Carré – Mas o filme já não é nosso.

Acácio de Almeida– Sim, já não é nosso…

Marie Carré– Intimamente é nosso. Temos uma imagem dele como uma criança. É um clichê o que digo, mas a verdade é que os clichês vêm de uma fonte de verdade. Agora, que o filme está aí, sou muito mais crítica em relação a ele. Até ele nascer e existir, estava a cuidar dele como um filho.

Acácio de Almeida– O filme ideal está constantemente a ser formulado. A partir do momento em que lhe damos forma, outra forma se desenha nele. É difícil dar um filme por completo. Pode ser dado por completo num determinado momento, mas no dia seguinte… O tempo que decorre entre o filmar e a montagem é o tempo que nos permite reconstruir, reimaginar, reinventar. Há a imaginação do filme, sem barreiras, limites, mas quando passamos à prática, essa imaginação encontra muitas dificuldades. É ao fazer que percebemos as dificuldades. Do pensamento à prática há uma diferença muito grande.

Acacio De Almeida, Marie Carré, Rodrigo Areias e João Paulo Macedo

Como atravessou tantas gerações do cinema português, como vê o facto dos portugueses não irem assistir ao seu próprio cinema? Como vê o facto do nosso cinema agradar mais lá fora, que cá dentro?

Acácio de Almeida: O cinema português tem a particularidade de ser, talvez, o cinema mais livre que existe na sua capacidade de expressão. Cada um conta aquilo que tem a contar e, nem o produtor, nem a instituição que financia, vão criticar o filme. Isso dá ao nosso cinema uma particularidade de ter uma liberdade total. Isso traz uma diversidade muito grande de filmes. Como o factor dinheiro não está em jogo

Marie Carré– Será que tem a ver com a evitação desde criança. Porque há uma dicotomia tão grande, tão grande… Há uma elite que vai ao Cinema Ideal e outros, ver os filmes da Catarina Vasconcelos, etc, mas como disse nunca é grande público..

E quando há um grande sucesso no nosso cinema, normalmente são produtos que normalmente têm uma linguagem mais de televisão… Parece que em termos de imagem, somos mais educados pela televisão que pelo cinema…

Acácio de Almeida: Exatamente. O nosso olhar foi formatado à televisão…

Marie Carré: Sim, da telenovela…

Acácio de Almeida: Sim, a telenovela. Começou no “GabrielaCravo e Canela“.
Marie Carré – Em França, apesar dessas escolas de cinema, não havia na escola pública uma educação de cinema. Mas não existe uma fractura tão grande como em Portugal. Tínhamos cinema de autor puro e duro, Alain Resnais, Marguerite Duras, mas depois tínhamos uma nuance sem ser o cinema televisivo. E tínhamos aquelas comédias de meio termo… Em Portugal talvez não exista meio termo

Acácio de Almeida– O Leonel Vieira tentou fazer isso. Introduzir a comédia – não francesa, mas americana. Teve alguns sucessos, mas o primeiro filme que fez foi a “Sombra dos Abutres” , que para mim continua a ser um filme interessante. Nós somos mais vistos lá fora por causa dessa singularidade. 

Marie Carré – E talvez podemos inverter a pergunta. Ainda bem que existe esta singularidade do cinema português

Acácio de Almeida – É ao fazê-lo que se torna singular.

Marie Carré – É uma multiplicidade de “eus” a singularidade lusitana

E além dessas reflexões sobre a luz, que deram origem a este filme, será que poderemos ver outro filme sobre outro género de reflexões?

Acácio de Almeida: Tudo pode acontecer.

Marie Carré: Não somos intelectuais…

Acácio de Almeida: Nada mesmo, mas há temas que nos podem interessar…

Marie Carré: Sim, mas tenho a sensação que seria mais para a ficção agora…

Acácio de Almeida: Sim, mas existem sempre coisas pessoais na ficção… Depende, se este filme tiver o mínimo – nem estou a pensar em bilheteira – de olhares, e não for rejeitado, é claro que é estimulante. 

Marie Carré: No início, para fazer este filme, o Acácio bateu a algumas portas e ninguém respondeu. 

Acácio de Almeida: Há muita gente a fazer o mesmo. A bater às portas…Cada um procura abrir a sua porta e fazer acontecer. E depois fica o que está feito. É isso que conta…

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