Terça-feira, 14 Maio

Nicole Garcia: “Carrego sempre a tragédia comigo”

Com quase 100 filmes nos créditos como atriz, Nicole Garcia regressa à realização com “Amantes”, uma nona longa-metragem onde o ambiente noir carrega uma história de amor pervertida. “Esta podia ser a história de um ‘Tristão e Isolda’ contemporâneos”, disse-nos a cineasta numa entrevista em janeiro, onde também assume o seu interesse constante em temas como o destino e as vidas duplas.

Em “Amantes”, uma história em três atos, seguimos uma mulher (Stacy Martin, de “Ninfomaníaca”) que vai às ilhas Maurícias com o marido (Benoît Magimel, de “A Pianista“) e encontra lá o ex-namorado (Pierre Niney, de “Yves Saint-Laurent”) que tinha desaparecido três anos antes. O destino volta a reuni-los, mas as consequências dessa (re)união carregam em si todo o peso do passado e da tragédia.

O que a atraiu a esta história, onde o passado tem uma grande importância?

Interessou-me porque é uma história bastante contemporânea, um pouco como de um romance noir muito atual, onde efetivamente com o dinheiro a jogar um importante papel num mundo onde a precariedade é uma certeza. Sempre tive interesse em colocar frente a frente dois mundos sociais diferentes, entrar na casa dos ricos e privilegiados, invejá-los, e como podemos perverter uma história de amor. Aqui temos dois jovens que se conhecem e são confrontados com um elemento dramático: uma overdose de alguém que vai obrigar o rapaz a fugir. Assim culmina o primeiro ato e já aqui a morte deixa uma assinatura. Depois temos um segundo ato de depressão para ela, vinda dessa ruptura. (…) Jogo muito com as elipses e adoro-as, pois permitem-me avançar para um outro ponto em que ela está já casada, não inserida num ambiente suburbano, mas burguês. Chega-lhe então o destino, novamente para a confrontar com o regresso desse homem, tudo num ponto em que ela se tornou noutra coisa que não era. Ambos estão em campos sociais diferentes e algo de mau vai acontecer nesse reencontro. Ela aliou-se a alguém que a ajudou a sair da depressão, alguém que lhe dá conforto e a protege (…) Não creio que este seja um filme romântico, nem acredito no romantismo. Quando o triângulo se forma, o ambiente torna-se noir, na forma de thriller de uma mulher entre dois homens…

Nicole Garcia, Stacy Martin, Pierre Niney e Benoît Magimel na apresentação de “Amantes” em Veneza

E esses elementos noir, foi buscar a algum lado a influência?

Sim. No início, a personagem da Stacy Martin tinha muito mais características da típica mulher fatal e influenciaram-me filmes como “O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes” na abordagem da mulher entre dois homens. Mas se no início tive essa influência, depois tentei modificar um pouco as coisas, sair dos estereótipos, que não me interessavam. Gosto de personagens com ambivalências, de querem uma e outra coisa que colidem. Personagens como o Simon, que tem uma dignidade no fim que não conhecemos no início. Ou a personagem do Benoît Magimel, que no final revela-se o mais apaixonado de todos, pelo menos para mim. Por isso, sim. Comecei no noir, mas tentei esquivar-me dos clichês desse género de filmes.

Muitas vezes dá vidas duplas às personagens dos seus filmes, como em “O Adversário” e aqui também. De certa maneira, também vive uma vida dupla, como atriz e realizadora?

A vida dupla faz parte de nós. Como atriz procuramos a sedução, estamos a fazer um papel que não é o nosso. Quando estás como realizadora, a energia é diferente. Por isso, nunca participei num filme realizado por mim.

Creio que pode ter razão, coloco nas personagens que escrevo qualquer coisa de duplicidade. Não como em“O Adversário”, onde tenho um homem que carrega em si uma máscara permanente. Aqui, a vida dupla da Stacy Martin leva-a a reencontrar aquele homem. Ela não diz que tudo acabou porque está casada, nem que abandona tudo e parte com ele, mas no final assume essa duplicidade, não cria uma história oficial, e sabe que vai pagar por esse reconhecimento e cumplicidade.

A tragédia é um elemento que acompanha sempre os seus filmes. É algo que a atrai?

Sim, é verdade. Carrego sempre a tragédia comigo. Os meus amigos estão sempre a dizer-me isso. ‘Tu és tão divertida, porque não escreves algo divertido?’Creio que escrevo com o que se afigura perante mim, como acontece com qualquer escritor. Às vezes não é necessariamente a tragédia, como por exemplo no “Um Instante de Amor” (Mal de Pierres.)

No “Amantes” há o encontrar o outro no meio da solidão, encontrar a pessoa que realmente conta para ti. E quando encontras esse outro, sentes que afinal é algo imperfeito, que não funciona. Todas as personagens procuram o amor e todas encontram contradições e ambivalências nessa procura.. Todas são muito solitárias e procuraram acima de tudo sair da situação em que estão.

E o destino, que ainda há pouco falou, tem também um papel fulcral no filme, e um pouco em toda a sua carreira. O destino e o passar do tempo, como muda o instante de cada um de nós. São temas sobre os quais reflete frequentemente?

O destino tem um grande papel a jogar e neste caso vai bater-lhe duas vezes. É uma tragédia que se desenrola em três atos e locais muito diferentes, Paris, Genebra e as ilhas Maurícias, e o destino vai cercá-la, especialmente no terceiro ato.

Esta foi a primeira vez que trabalhou com protagonistas mais jovens. Como foi esse trabalho e como escolheu a Stacy Martin e o Pierre Niney para o filme?

Escolhi a Stacy Martin por causa do Pierre Niney. Acho que os dois são muito contemporâneos e carregam em si algo de muito comum. São quase como gémeos, juntos e depois separados. E não podem ser separados. A tragédia espreita quando os separamos. O Benoit Magimel traz algo ao filme que coloca esta história ao nível da do Tristão, Isolda e o Rei Marco. Não é mitologia, nem Ópera, mas no mundo contemporâneo, esta podia ser a sua história. Um Tristão e Isolda contemporâneas.

Disse numa entrevista que era uma atriz que fazia filmes. Não se considera uma realizadora?

Bem, disse isso com muita humildade, mas não acredito efetivamente nisso. É muito importante para mim que as atrizes e atores saibam que fico muito contente com eles e com o filme pelas suas performances, dando-lhes assim confiança. Creio que consigo extrair isso deles porque venho daí, do trabalho de ator. Fiz teatro e depois cinema. É como se de manhã dissesse que sou uma atriz que faz filmes, mas depois, quando estou mais segura de mim, mais orgulhosa, digo que me tornei uma cineasta.

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