Quinta-feira, 25 Abril

Dal pianeta degli umani: explorar o presente como um filme fantástico

Na última edição do Festival de Locarno, talvez não existisse material mais poético, político e social que o mais recente documentário de Giovanni Cioni, “From the Planet of Humans” (Dal pianeta degli umani), um ensaio que fala do passado e presente, vida e morte, algures entre a fábula realista e a ficção científica, sempre adornado de um discurso filosófico.

O foco é a região fronteiriça entre Itália e França, Ventimiglia, ponto de passagem de migrantes que fugiam ao fascismo de Mussolini no passado e que agora servem de trânsito silencioso para outro tipo de refugiados. “Tinha uma intenção de mostrar a conexão entre a fronteira e o silêncio, onde o invisível atua, e onde temos a história de um médico que não é louco, mas faz experiências loucas que parecem saídas de uma personagem dos filmes de ficção científica dos anos 1930”, explicou-nos o cineasta em Locarno, onde o filme surgiu numa sessão especial fora de qualquer competição.

O médico em causa é o  Dr. Serge Voronoff, um cientista judeu russo que se tornou cidadão francês, depois de ter vivido e feito estudos médicos nos Estados Unidos. Foi nessa região que ele viveu de 1925 a 1939, e realizou a suas experiências em busca da receita da eterna juventude, as quais chegaram a passar pelo enxerto de tecido testicular de macacos para transplante para humanos, sempre para fins supostamente terapêuticos. “Queria tratar do presente numa perspetiva quase lúdica, usando extratos de filmes fantásticos, material de arquivo e fotos, como se tudo estivesse a acontecer agora.

Giovanni Cioni

Se Ciani crê que a história se repete, pior que isso é o olhar para trás como se nada se tivesse acontecido. Ele mesmo deixa isso bem claro através de uma narração de textos abertamente poéticos e que entram pelo caminho filosófico com mestria. O resultado final é um objeto tão belo como complexo que nasceu como “um conceito geral” na forma de um “enigma” que passasse pela história de Voronoff e do Fascismo e chegasse ao presente. “Era uma viagem em que desembarcaremos finalmente no presente“, confessa, acrescentando que: “havia uma ideia inicial, a de explorar o presente como um filme fantástico de outros tempos”.

A construção do guião foi assim efetivamente feita durante a montagem, que aconteceu a dois tempos, primeiro executada por Ciani e numa segunda fase com a colaboração de Philippe Boucq, amigo e colega de longa data do cineasta que reside em Bruxelas. Com a pandemia a decorrer, o diálogo entre os dois foi totalmente pela via virtual. Foi nesta segunda fase da montagem que também surgiu a ideia da narração em off. “Tudo saiu melhorado com o uso da voz. Esta assenta num texto que não explica o filme, mas que abre uma conversa e discussão. Existe nesse texto muita ironia, que acho essencial pois considero que no cinema existe uma dimensão muito lúdica”. 

Por isso mesmo não faltam referências cinematográficas na fusão entre o real e o ficcional, com filmes como “Frankenstein”, “King Kong” e “A Ilha de Dr. Moureau” a servirem de âncora para o jogo de imagens e textos orais que nos penetram a mente e teima em não largar.

A Villa Grimaldi, ou Villa Voronoff, em Ventimiglia, está hoje abandonada e foi aqui que Giovanni Cioni foi fazer a sua investigação, construindo no processo um dos melhores documentários de 2021, que certamente não escapará à exibição num certame nacional.

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