Numa época em que a positivação de parâmetros classificativos se tornou no alimento divino dos motores algorítmicos que servem a fábrica de imagens em tempos conhecida por Hollywood, eis que nos aparece um novo filme protagonizado por Kevin Hart na Netflix. “Me Time” vem no seguimento do acordo multimilionário que Hart e a sua produtora, a HartBeat Productions, assinaram com a plataforma de streaming ainda em 2021, e já tem alguns pergaminhos associados ao seu nome. Não são de ignorar:  no agregador Rotten Tomatoes, e à data de publicação deste texto, é mesmo o filme mais mal amado de toda a carreira, um feito que partilha aliás com Mark Wahlberg, o co-protagonista de uma “comédia” que se propõe a encenar pela milionésima vez as aparências de um casamento feliz.

O twist aqui, se é disso que verdadeiramente se trata, passa pela inversão de papéis: Sonny (Hart) é um pai dedicado a tempo inteiro à educação dos seus filhos, cabendo à sua mulher (Regina Hall) o papel de profissional de sucesso, um contrato matrimonial que é colocado à prova com a entrada em cena de um amigo de longa data, Huck (Mark Wahlberg), o solteirão invariavelmente predisposto a bacanais mais ou menos exagerados.

O que se segue ao longo da duração do filme, são os gags e peripécias que de uma forma ou outra já se materializaram no nosso imaginário mesmo antes de as vermos: as festas improvisadas e invariavelmente interrompidas pela família de Sonny, as cenas de ciúmes disparatadas provocadas por uma data de mal entendidos, reconciliações apaziguadoras e tranquilizadoras não fosse tudo isto perturbar ou beliscar o papel do casamento neste nosso mundinho e por aí fora, tudo embrulhado numa lógica vazia de cinema. Tão depressa se vê como se esquece, mas nada disto interessa verdadeiramente para as contas do jogo: “Me Time” (para quem quiser acreditar na autenticidade das métricas publicitadas pelo gigante do streaming) foi com larga margem o filme mais visto globalmente na semana em que estreou na plataforma.

E é claro que não há aqui nada de particularmente surpreendente, por mais que a constatação da contínua infantilização do gosto de uma parte importante do público seja sempre recebida com um certo esgar.  Com alguma criatividade, bem que poderíamos relacionar este panorama com uma das sequências do filme: aquela em que Sonny é estraçalhado por uma puma ribanceira abaixo, numa luta entre animal e homem que não tem graça nenhuma mas que nem por isso deixa de provocar as suas cicatrizes. O esgar deste nosso herói quando se dá conta da gravidade dos ferimentos provocados pelas voltas que o animal lhe deu, é mais ou menos a mesma que ainda havemos de fazer coletivamente, quando nos apercebemos daquilo que se perde quando o imaginário comum é moldado pelas voltas e reviravoltas do algoritmo. 

Pontuação Geral
José Raposo
me-time-em-busca-do-tempo-perdidoTão depressa se vê como se esquece, mas nada disto interessa verdadeiramente para as contas do jogo: "Me Time" foi com larga margem o filme mais visto globalmente na semana em que estreou na plataforma.