Quando no início Leos Carax, por trás de uma mesa de mistura, chama a filha (a quem dedicará o filme) para dizer que o “espetáculo vai começar”, está-se a fazer dois anúncios: a da compreensão do projeto como um espetáculo e a natureza mais pessoal da história. O que segue (um “travelling” invertido seguindo músicos e cantores pelas ruas) remete à famosa “cena do acordeão” de “Holy Motors”.

A partir daí é música (composta pelo duo Sparks) e uma história, vagamente na trilha que se adivinha trágica de “Amantes da Pont Neuf”. Marion Cottilard é Ann Defrasnoux, uma doce cantora de ópera, amada e célebre; Henry McHenry (Adam Driver) é um comediante famoso pelas provocações em que assume como alter ego o “Ape Man”.

Muita coisa remeterá ao próprio Carax, inevitavelmente, e não se dissociará dos poucos projetos que filma em longos intervalos temporais – a própria música, os passeios de mota, o personagem-masculino nos limites do histrionismo (a sequência da performance de Driver em Las Vegas). O mais relevante elo é o questionamento dentro da própria arte (o número onde Henry responde ao público porque decidiu ser comediante é um exemplo) e o jogo da teatralidade e do simulacro. O que aqui se torna duplamente teatral – já que assume de vez a forma com a qual o cineasta já havia flirtado antes: o musical.

Assim, visto que dentro deste género onde a artificialidade é a regra, qualquer cena surrealista encaixa no estilo parcialmente dissociado da tarefa de contar uma história de forma linear. Carax fá-lo com sobreposições (a cena onde figuras sacras surgem no meio do passeio de mota pela noite), choques sonoros (o da metralhadora no espetáculo do “homem-macaco”) e outros recursos. O que não significa que não existam surpresas e a “personagem”-título é a maior delas: uma bizarrice desconfortável e plena de mistério.

O maior problema é que todo esse jogo se vincula a um propósito que é, efetivamente, pessoal – daí o filme chamar-se “Annette”, o nome de um bebé. E então a dúvida: onde finda o sarcasmo ou o ensaio das representações e se inicia o drama, aquele momento em que Carax pode querer que o espectador se importe com a sua história? Por outras palavras, tal como nos êxtases grandiloquentes de sequências de “Pola X” ou “Os Amantes da Ponte Neuf”, o cineasta condena quem assiste a um arrebatamento inevitavelmente intelectual – e dificilmente emocional.

Annette” soa também como uma longa litania de desprezo pelo meio artístico – a vaidade, os egos incontroláveis, a ganância, o alcoolismo, o desregramento e a transformação progressiva de um artista enciumado num psicopata. Não faltam a imprensa cor-de-rosa e as acusações de assédio, que aparecem apresentadas mais como um espetáculo mediático do que como reflexo de qualquer princípio salutar de igualdade de género.

Longe de ser um filme para audiências fora de um circuito rigorosamente adulto, no entanto, Carax concede algumas explicações – e a última e rápida tomada antes de a imagem se desvanecer (uma boneca no chão) dá pistas sobre quem era, afinal, Annette – ou, pelo menos, no plano simbólico e naquilo que representava para os seus pais.

A Amazon vai distribuir o filme nos Estados Unidos e, depois do lançamento em algumas salas, a partir de agosto estará disponível no mundo cibernético/televisivo à escala mundial. A envergadura audiovisual de “Annette” confirma, se dúvidas houvessem, o poderio do grande ecrã e dos dispositivos sonoros da sala como garantia de uma experiência inultrapassável.  

Pontuação Geral
Roni Nunes
annette-a-bela-da-opera-e-o-homem-macacoVisualmente grandioso, cheio de belas músicas e um “insight” sobre a natureza da arte e o abismo dos artistas. O arrebatamento, quando há, é intelectual, dificilmente emocional.