Sexta-feira, 29 Março

Partida: Porto/Post/Doc foi à boleia no road movie de Caco Ciocler

Apresentado (e bem) ao público do seu país como o jovem Jeremias Berdinazi na telenovela “O Rei do Gado” (1996-1997), Caco Cicoler consolidou uma reputação de íman de olhares ao longo das duas décadas e meia em que alternou o seu tempo entre televisão, a ribalta e o cinema, sendo este último palco de alguns dos seus melhores desempenhos.

A figura de alta classe média borracha que viveu em “O Banquete”, de Daniela Thomas, em 2018, e a figura troglodita do policia Santana, de “Simonal”, também lançado há dois anos, ilustram a sua polivalência. Uma polivalência que se estende por outras latitudes, arrebatando láureas.

Em 2019, ele tomou os maiores festivais brasileiros de assalto com um novo processo de construção de narrativa cinematográfia no qual assina a direção: “Partida”. Uma das atrações do Festival de Málaga, em Espanha, a longa-metragem chegou a Portugal, sagrando-se vencedora do Grande Prémio Vicente Pinto de Abreu na competição internacional do festival Porto/Post/Doc.

No Brasil, o filme já está em exibição em streaming desde o dia 18 de junho: no Now, Vivo Play, Oi, Petra Belas Artes, Filme Filme, Looke, iTunes e Google Play.  A sua passagem pelo Festival de Aruanda, na Paraíba, foi coalhada de prémios, incluindo o troféu de melhor montagem (para Tiago Marinho) e o Prémio Especial do Júri.

Uma série de exemplares do que a não ficção brasileira tem de mais forte tem corrido as telas de Portugal. Em outubro, o DocLisboa projetou “Nheengatu”, mergulho amazónico de José Barahona, e o biopicÉ Rocha e Rio, Negro Leo”, de Paula Gaitán. Agora, foi a vez do Porto – que também distinguiu o brasileiro “Êxtase” – entender parte dos conflitos políticos de uma pátria assolada pelo conservadorismo.

Há um poema de Brecht que vestiria de Sol o documentário “Partida”, um astro de luz própria graças à inquietação e ao espírito de coletivo de Caco Ciocler. A poesia: “Para ganhar o pão,/ cada manhã/ vou ao mercado onde se compram mentiras./ Cheio de esperança / busco meu lugar entre os vendedores”. Sem obrigatoriedade alguma de entregar à plateia a reação que se espera como resposta natural ao seu título, ou seja, “chegada”, Ciocler filmou um jogral sobre ofícios e resiliências. Um jogral sobre aquilo que Brecht – alguém que, segundo o teórico Frederic Jameson, era um criador apaixonado por bons vinhos, bons queijos e bons atores – considerava ser a infraestrutura dos profissionais do Teatro. Ou seja: o dever de colocar a Mentira à prova, para, com isso, esfacelar o autoritarismo daquilo que chamamos Verdade.

A sua mais recente longa-metragem como realizador (antes dele veio “Esse viver ninguém me tira”, de 2014, sobre Aracy Moebius de Carvalho, o Anjo de Hamburgo) é um road movie sobre o sentido crítico, trágico e redentor da palavra “encenação”. Nada seria mais compatível com esse substantivo do que a linguagem documental, formato narrativo calcado em dispositivos que pressupõem o desvelamento, o desapego das convenções fabulares, uma ou algumas formas de alumbramento da realidade. Ciocler traz muito do vocabulário cénico para a gramática de um documentário calcado no deslocamento.

O conceito de “encenação” aplica-se à fita no momento em que a sua “protagonista” (o eixo de humanidade dessa jornada de registo), a realizadora e atriz Georgette Fadel, assume para si um devir candidata. Estamos no final de 2018, frente à chegada de Jair Bolsonaro à Presidência, e Georgette resolve tornar-se candidata, decidida a concorrer ao comando do Planalto em 2022. E, para se reencontrar com os anseios políticos que, naquele momento, pareciam impossíveis, embarca numa viagem de autocarro ao Uruguai, na utópica tentativa de passar a passagem do ano com o ex-presidente Pepe Mujica, lenda viva da resistência moral e integridade ética. Mas ela não parte sozinha: companheiros de arte vão consigo e Ciocler junto, com a sua câmara. Ainda nos primeiros minutos, esbarra em Léo, um empresário rico, com posições políticas polémicas, mas que se tornará, quem diria, o principal parceiro de andança de Georgette. Uma andança que abriga muitos artistas, incluindo Caco. Todos, naquele Submarino Amarelo de quatro rodas, trafegam pelas estradas da dialética – a estrela bailarina de Brecht – em torno de certezas que se convertem no estopim de conflitos e em torno de dúvidas que se metamorfoseiam em sínteses. Sínteses de um Brasil que ainda pára de pé, seja à esquerda ou à direita. Georgette pondera com certa angústia de ter uma empregada na sua casa e se ver, de alguma forma, numa condição burguesa, de patroa. Há quem a questione: “Você é toda radical, mas não limpa a sua própria provada”. Ao mesmo tempo, ela abre, com uma riqueza singular, um debate sobre a acomodação dos atores a uma condição de conforto e explica como o dinheiro vicia – “Se você se acostuma a viver com R$ 10 mil, não vai saber viver com R$ 3 mil. Se começa a ganhar R$ 40 mil, não vai mais saber viver com R$ 10 mil”.

Há algo nessa conversa que evoca um antigo e primoroso trabalho de Ciocler: a peça “45 minutos” (2011), de Marcelo Pereira. Era um texto (precioso) sobre um ator, confinado a viver nos fundos de um teatro, que precisa entreter os seus espectadores sem ter muito um porquê, apenas pela inércia da sobrevivência. A trupe de “Partida”, ao contrário do tal ator inerte, não encara o “sobreviver” como fado ou fardo, e sim como um ato celebrativo, um canto de bodes bravos, que gemem por Apolo, mas são atendidos por Dionísio.

Daí termos um filme que massacra convenções, brincando (de embaralhar) com as fronteiras entre o que é convicção e o que é uma interpretação, bem parecido com o exercício de Michel Gondry em “The We and The I” (“A Malta e Eu”, 2012), também ambientado num autocarro. Só que o trocador aqui é a Utopia. Trocador (ou cobrador) é uma função que foi “sucateada”. Talvez a urgência de andar nessa lotação de Caco seja uma forma de impedir que a Esperança se “sucateie”.

Portugal entendeu esse pleito. Que o Brasil, que volta às urnas deste domingo, possa entende-lo também.

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