Amazing Grace: de gospel nas veias, ouçamos a voz do Divino

Esperamos 46 anos para que fosse possível evidenciar esta aparição de Aretha Franklin num suposto acidente que se torna uma espirituosa homenagem ao seu legado. Uma produção de Spike Lee.

Um belo edifício surge perante nós. Numa das suas fachadas é possível termos a perceção da sua futura estética, uma magnifica e trabalhada construção que se erguerá na cidade em todo o seu apogeu, mas do outro lado, ainda inacabado, a estrutura de ferro e betão carece da sua capa. Duas metades fazem-nos anteceder o antes e depois, e no seu todo, a imperfeição resultante desse calculado caminho à perfeição.

Amazing Grace é essa arquitetura projetada, mas não idealizada, o documentário que abraça o seu processo de criação e que através do “acidente” de percurso, que é a sua existência, se converte num divinal making-of do concerto de duas noites na Igreja do Reverendo James Cleveland, em Los Angeles, 1972, da grande rainha do soul – Aretha Franklin. Incorporada para prestar um serviço religioso, a pujante voz por detrás de “(Sweet, Sweet Baby) Since You’ve Been Gone” abraçou um outro género musical, vivido na sua infância (vista ser filha de um reverendo) o qual acompanhou o seu crescimento profissional – o gospel. Perante um publico curioso, devoto e convidado (no qual se integram algumas estrelas como Charlie Watts e Mick Jagger), Franklyn ascendeu aos céus numa omnipresente melodia, suor e lágrimas, como se estivesse envolvida num intenso estado de transe.

Desta performance nasceu um dos discos mais importantes do género, o dito Amazing Grace … e não só, mas foi um dos marcos da música norte-americana. A gravação do álbum levou à conceção de um concerto filmado com destino à televisão, por detrás dessa tentativa encontrava-se um inexperiente Sydney Pollack (Tootsie, A Firma), visível a dar instruções aos membros da equipa que cercavam a diva e as suas constantes e transcendentes canções. Contudo, algo aconteceu, por motivos técnicos o projeto foi inconcebível, seguido por questões de direitos que impediram o concerto ser divulgado até à sua estreia no festival DOC NYC em 2018, num trabalho continuado por Alan Elliot (visto que Pollack faleceu em 2008).

Só que Elliot não se dignou a revestir as filmagens num embrulho de intocável brilhantismo. Amazing Grace abre com um aviso, um contexto histórico para depois seguir, sem medos, pelas suas fissuras – os closes ups fracassados e desengonçados, as falhas de som, os enganos, o rosto “inundado” de Aretha, os reprises, o inesperado e as emoções incontroláveis e não programadas. São estas imperfeições que nos fazem antever a sua perfeição, que infelizmente não iremos presenciar em imagem, mas que reside no áudio deste Amazing Grace.

É através desses erros, desses bloopers e imprevistos que o documentário transforma-se numa oportunidade de aproximação do público para com a cantora, um intimismo raro que posiciona Aretha no devido lugar dos mortais, fora dos contornos divinos atribuídos enquanto ícone. Amazing Grace é essa estrutura de aço em pré-construção, inacabada mas que preenche a paisagem com uma presença altiva.

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