Pode uma transformação física minar todo o julgamento que possamos ter sobre um filme?
Em boa verdade, culpe-se o marketing, que colocou a transformação de Nicole Kidman no centro da sua promoção, prometendo-nos uma performance para os livros de história. Aliás, não demorou muito tempo para haver uma contra-reação, a gozar quer com a maquilhagem que a atriz pôs na cara para a envelhecer e lhe fazer parecer que esteve 16 anos a consumir a sua própria culpa ao pequeno-almoço em vez dos cereais açucarados que o comum humano toma, quer até com a peruca que usa nos flashbacks para o ponto da sua vida onde tudo dá para o torto (Kidman tem usado tantas perucas que se tornou um alvo fácil).
O marketing não mentiu, atenção. Mas omitiu que por detrás de uma grande performance, há sim um filme sempre interessante.
Comecemos pela performance, injustamente subestimada – ou subvista? – nesta temporada de prémios (talvez apenas comparável, na maneira como usa o deglam a favor de uma mudança completa a nível de linguagem corporal e voz, a Charlize Theron em Monster, e à sua própria performance em The Hours). A maquilhagem da atriz não impede esconder um dos rostos mais conhecidos de Hollywood, mas é também ela um instrumento essencial tanto à performance como à narrativa do próprio filme, sempre posicionando-nos em dois tempos, colocando-nos diretamente no transe da sua protagonista. Não é por acaso que o filme abre precisamente com um close up de meia cara de Kidman, onde os seus olhos azuis claramente viram tudo o que havia para ver, ou então imaginaram o cenário pior. Quando não estamos a olhar para ela, estamos a olhar o que vê, embora os olhos da câmara por vezes se coloquem fora do seu corpo, em modo observatório/águia face a planos mais panorâmicos ou, numa ocasião particular, como uma lesma colada ao carro que usa para executar o seu “ajuste de contas”.
A pessoa destruidora do título aponta para a protagonista e ao seu circuito de autodestruição, que finalmente encontra um último gás para desatar a perseguir o outro “destruidor” ao qual o título também pode fazer alusão: mais do que um vilão clássico invencível, este é retratado como um mero peão igualmente humano – se menos aprofundado que a anti-heroína – no jogo de pilhagem. A maneira como este desenlace é resolvido faz lembrar precisamente o outro thriller superlativo do ano – Widows de Steve McQueen, também ele uma subversão de género e raça face ao que estávamos habituados a assistir na década de 70, de Siegel (o Dirty Harry de Clint Eastwood) a Friedkin (The French Connection).
Sim, há uma tensão soberbamente engendrada por Karyn Kusama a meio, com Erin a sabotar ela própria, não pela vontade de sair a ganhar, mas pela sua força da sua fisicalidade débil em modo “sobrevivência”, um assalto ao banco que culmina no que pode ser descrito numa versão sangrenta de uma luta de lama, e num dos vários momentos estranhamente tocantes da película, onde ambas as mulheres acabaram por ser vítimas do mesmo homem, em níveis diferentes. Mas olhe-se para o desenlace final a seco, preocupado em resolver em contra-relógio a situação, pelas feridas entretanto acumuladas, pelos parceiros de crime, ou pela culpabilização da própria, e o abrir da boca será mais pelo desenho da reviravolta final do que pela maneira gloriosa e “hollywoodesca” como este (não) é executado.
Embora use as suas influências canónicas do noir e neo-noir como motivo de existência (o arquétipo do detetive sujo e deformado seja praticamente tão antigo como o género onde se insere), e abuse na redução dos frames por segundo numa imagem final (picuinhice pessoal), Destroyer merece tanto mais que um mero rótulo de policial rotineiro.
André Gonçalves