«Ainda temos o amanhã» : violência doméstica e direitos femininos

Podemos deixar para o amanhã o que já devíamos ter resolvido? Não devíamos, entretanto há coisas que levam tempo para se resolver. Principalmente, quando se trata de violência doméstica contra as mulheres, não importa a época, nem o país. Um tipo de violência aceite socialmente em nome da família e do patriarcado, uma hipocrisia que perdura desde sempre. Por muito tempo, as mulheres eram propriedade dos homens e, alhures, ainda há uma parcela deles que pensam assim. Nos dias que correm, a emancipação feminina demanda um preço alto e também na Itália no contexto do pós segunda guerra. Época em que as mulheres italianas conquistaram os direitos civis de votar. É no enlace destas questões que a realizadora italiana Paola Cortellesi, estreante em longas-metragens, constrói e realiza a história de  «Ainda temos o amanhã« (C’è ancora domani, 2023).        

A narrativa tem como protagonista Délia (interpretada pela própria Paola Cortellesi, 1973-), que além de realizadora é também atriz. No filme, ela é mãe de dois meninos e uma adolescente, além de ser uma esposa explorada diariamente por um marido violento e tosco. Ivano (interpretado por Valerio Mastandrea) despreza, bate e humilha Délia diante dos olhos de todos. Além disso, ela é cuidadora do sogro acamado, desequilibrado e machista como o filho.

 «Ainda temos o amanhã»  é filmado em preto e branco e em locações naturais, num tom realista, com atores profissionais e não profissionais e diálogos no dialeto romano. A diretora explora o universo quotidiano de Délia no seio de uma família de classe baixa cheia de conflitos. Traz referências realistas do cinema italiano dos anos 40 (Rosselini, De Sica, Visconti), mas não o realismo puro. Cortellesi faz uma releitura do passado longínquo e do neorrealismo. O filme retrata temas sociais trágicos, com pitadas de comicidade, seja nos diálogos ou nas ações das personagens, e na leveza das canções que compõem a banda sonora, somado à beleza pictural das imagens.

A protagonista é uma dedicada dona de casa e faz uns biscates aqui e ali para ajudar a sustentar a família, e como modo de subverter alguma opressão do marido inútil e agressivo, esconde parte do que ela ganha nos trabalhos fora de casa, na esperança de uma vida melhor para a sua filha, já que não quer que a adolescente tenha um futuro como o seu.

A caminho do trabalho externo, Délia fabrica uma linha de fuga para fugir da opressão conjugal e seguir vivendo, quando visita a amiga Marisa para pôr a conversa em dia. Marisa, juntamente com o marido, é dona de uma banca de legumes numa feira de rua  (eu diria que é a única mulher não submissa do filme, e inclusivamente dá ordens ao marido sobre o trabalho que fazem). Délia também inventa tempo para conversar com um pretendente amoroso numa oficina mecânica no regresso a casa, tudo isto sem que o seu marido saiba.         

 «Ainda temos o amanhã»  foca na violência contra as mulheres, nos direitos femininos, no sexismo e machismo. Há falas e ações ao longo do filme nas quais vemos os direitos das mulheres sendo negados, a exemplo de quando Délia descobre que faz o mesmo trabalho de um homem numa oficina para arranjar guarda- chuvas, um iniciante que, todavia, recebe mais do que ela, simplesmente por ser homem. Uma realidade que infelizmente ainda persiste em qualquer profissão.  

Délia é diariamente agredida pelo marido, fisicamente e emocionalmente, não o ama, mas não consegue se libertar dele, mesmo tendo a possibilidade de fugir com outro homem que a deseja. Parece que a responsabilidade com os filhos e o peso da instituição família fala mais alto que o seu sofrimento. Talvez também ela não tenha tido a coragem de fugir com o pretendente amoroso, por pensar que, com outro homem, poderia igualmente ser maltratada e desprezada, uma vez que na época em que o filme se passa, o machismo e a força do patriarcado era gritante, quase institucionalizados pela sociedade. 

Há algumas cenas do filme, feitas para chamar a atenção dos espectadores, nas cenas em que o marido de Délia a espanca, a realizadora cria uma dança coreográfica e amorosa, o que me incomodou muito enquanto mulher, pois senti que tal estetização suaviza a violência feminina, além das marcas de agressão do marido, que no filme se apagam no corpo de Délia como num passe de mágica. Penso que existem outros modos de interpretação que não precisam maquilhar a violência, nem tão pouco reforçar como fazem interpretações mais incisivas. Délia representa todas as mulheres vítimas de violência doméstica. Eu nunca sofri isto, mas não creio que seja confortável e afetuoso ser espancada e depois ir dançar com o agressor. A opressão contra as mulheres, sejam pobres ou ricas, ainda persiste, precisa ser reconhecida e afrontada pela sociedade.    

Por outro lado, gostava de destacar o primor do enquadramento, composição e picturalidade do primeiro plano do filme, o qual temos a impressão que é uma pintura. E igualmente a qualidade técnica do longo e lento travelling horizontal de Délia andando pela rua. A câmara acompanha-a sem cessar durante todo o filme. Sem esta personagem, o filme não existiria, apesar de todas as contradições da sua vida, ela é uma mulher forte e resistente.                 

Numa entrevista, Cortellesi revela que «o filme, em parte, foi inspirado em histórias das suas avós, que viveram o período no qual a ficção  foi ambientada (1946), de modo a pôr em discussão questões latentes da atual sociedade italiana, como o machismo tóxico e persistente». Machismo enraizado na estrutura de muitas sociedades e países. Quando do lançamento do filme na Itália, a realizadora declarou : “Percebi que todos os italianos, jovens ou idosos, reconheciam no filme um bocadinho da sua própria família. Não necessariamente a violência, mas certas atitudes em relação às mulheres.” Esta identificação dos espectadores com o filme revela problemas estruturais que incomodam e ainda não foram resolvidos. Neste sentido, o cinema tem sido um ambiente seguro para realizadoras corajosas trazerem a discussão temas femininos e sociais que ficaram encastrados dentro das paredes das casas de muitas famílias. É preciso urgentemente mudar a mentalidade de gerações que taparam o sol com a peneira. O combate à violência e a conquista pelos direitos de nós mulheres têm sido uma luta feminista constante.              

Sobre as questões políticas do pós segunda guerra não foram aprofundadas no filme, são apenas pano de fundo para ambientar a história, embora ao longo do filme vemos soldados norte-americanos ocupando as ruas e no final da narrativa é mostrado o referendo para a escolha entre a República e os Savoias, resultando na queda da Monarquia comandada por esta família de 1861-1946. É nesse momento que Délia faz uma transgressão ao ir votar. Contudo, não nos é dado a ver nem mesmo um resumo do processo de luta das mulheres italianas pela conquista do direito civil de votar. O primeiro país do mundo a garantir o sufrágio feminino foi a Nova Zelândia, em 1893, graças ao movimento liderado por Kate Sheppard. Em Portugal foi em 1931, mas com limitações, e no Brasil em 1933. Na Arábia Saudita, esse direito somente foi garantido às mulheres em 2015. Os nossos direitos não são paritários, a nossa liberdade e autonomia ainda são limitadas e ameaçadas, mas quiçá um dia isso mude, seguimos na luta geração após geração!     

«Ainda temos o amanhã«  homenageia os atos de mulheres desconhecidas que, mesmo sem pretender, contribuíram para a construção de uma sociedade menos machista e menos patriarcal. O filme é otimista e abre caminhos para novas gerações femininas. Recebeu três prémios no festival de Roma, já foi visto por mais de 5 milhões de pessoas nas salas de cinema italianas, atraiu espectadores de todas as idades, sendo quase metade do público masculino. E foi contemplado com o Prémio do Público na recente Festa do Cinema Italiano em Lisboa, onde pude vê-lo. A ficção dura 2 horas e tem como argumentistas Paola Cortellesi, Giulia Calenda e Furio Andreotti, mexe e remexe com as nossas emoções e visões sobre os temas abordados pela realizadora. Estreia nas salas de cinema de Portugal quinta-feira dia 9 de maio de 2024. Vale a pena ver! TRAILER

Pontuação Geral
Lídia ARS Mello
ainda-temos-o-amanha-violencia-domestica-e-direitos-femininos «Ainda temos o amanhã»  foca na violência contra as mulheres, nos direitos femininos, no sexismo e machismo.
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