“Nope”: não olhes para cima…

Já nos cinemas

Com três filmes memoráveis em cinco anos – “Foge”, “Nós” e agora este “Nope” – Jordan Peele vai construindo uma identidade no cinema do terror/horror/thriller como M. Night Shyamalan o fez na primeira década do novo milénio, curiosamente também agora apoiado pela Universal Pictures, o único estúdio que parece disposto a apostar nestes caminhos do cinema fantástico da velha guarda, bem longe do material franchisado e serializado, que tanto serve tanto de extensão como merchandise para outras artes (dos comics Marvel e DC a grandes sagas literárias como Harry Potter, LOTR e Guerra dos Tronos). 

E nesse percurso construtivo bastante coerente, o realizador e argumentista norte-americano tem invariavelmente percorrido o grande ecrã com o eclodir de diversos monstros, fossem eles mundanos e reveladores do racismo sistémico (“Foge”), reflexos antagónicos de nós próprios prontos para nos atormentar (Us) ou entidades inexplicáveis que, por entre as nuvens, agem como predadores perante o que está abaixo.

E tal como Medusa petrificava quem olhava para ela, aquilo que comanda a chacina em “Nope” alimenta-se daqueles que os olham nos olhos, qual invasor transformado em caçador, com uma espécie de código embutido num dispositivo de ficção científica que, tal como os objetos anteriores do cineasta (e muito do cinema de género atual, especialmente o de Shyamalan), serve de atualização contemporânea ao mundo “Twilight Zone”, onde questões políticas, sociais e raciais ganham ênfase nas entrelinhas da ação do cinema de Peele, especialmente no que toca à cultura afroamericana.

Mas se esses elementos raciais eram extremamente explícitos em “Foge” e se faziam sentir também em “Nós”, por aqui é no campo de uma eventual alegoria que se evidenciam em cena, mesmo que sejamos brindados – aqui e li – com pequenos detalhes mais explícitos sobre o apagamento dos afroamericanos da História oficial.

Nope”, que bem podia se chamar “Don’t Look Up”, não fosse já existir esse título, é um melting pot de influências em terreno do fantástico, onde prima a tensão e onde nada, absolutamente nada, por mais coincidência que aparente ser, aparece no ecrã por acaso. A começar pela história dos Haywood, pioneiros no cinema e agora experts no treino de cavalos para o mundo do entretenimento, passando pelo nome do protagonista (OJ), até à história aparentemente paralela de um massacre perpetrado por um símio numa sitcom, e que serve de background para Ricky “Jupe” Park (Steven Yeun) e para a correlação ao não olhar/deves olhar, mais tarde estabelecida por OJ. E não podemos esquecer a chamada a cena de um diretor de fotografia enigmático, como se tratasse da versão Peele da personagem de Quint do “Tubarão” de Steven Spielberg, um dos filmes que claramente contribui com largos pedaços de inspiração, seja nos bonecos insufláveis que funcionam como os barris ou a decisiva botija de gás de “O Tubarão”, seja através das frases feitas (oneliners) que trouxeram um carisma mnemónico para fitas que se tornaram clássicas.

Sem medo de falhar, em terrenos movediços em qye espectador de cinema cada vez parece mais dependente do realismo (e longe da suspensão da descrença), Peele escolhe a opção de poder ser ridicularizado no reino sci-fi, revelando – mais uma vez – conhecer os códigos de género, onde não faltam pitadas de Hitchcock, Carpenter, Spielberg e até Wes Craven, não fosse aquela personagem do trabalhador da loja de produtos eletrónicos quase saída de “Scream”.

Mas mesmo com todas essas influências, umas mais explícitas, outras menos, Peele consegue fazer uma obra perfeitamente identificável como sua, sendo assim um dos raros casos do cinema mainstream atual, onde o seu ADN, por mais linhagens sanguíneas de cineastas do passado corram nas suas frames, tem marcadores muito pessoais que o distinguem dos demais.

Resta apenas falar do brilhante trabalho de fotografia e arranjo sonoro, sem os quais “Nope” não teria o poder de ir além do que mostra e se ouve, perdurando e estranhando-se no espectador, e em toda a atmosfera nefasta (qual nuvem negra) que sombreia as personagens e esta estória.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
nope-nao-olhes-para-cimaPor mais linhagens sanguíneas de cineastas do passado corram nas suas frames, Jordan Peele tem marcadores muito pessoais que o distinguem dos demais.
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