“Frágil” e a precariedade de fazer cinema em Portugal

Não estava completamente cheia a sala Manoel de Oliveira para ver “Frágil”, a explosiva primeira longa-metragem de Pedro Henrique (“nome artístico” de João Eça), mas dificilmente haverá uma sessão neste IndieLisboa que provoque tanta azáfama e burburinho.

Se este filme se fez foi graças à disponibilidade da própria malta que trabalha em cinema, que vive à base de favores e entreajuda”, disse um amigo do realizador na apresentação da sua obra, na qual a precariedade e discriminação salarial foi um facto: “Muitas vezes é mais fácil filmar e acumular problemas e depois esperar que tudo se resolva na montagem. O resultado, filmes sem dinheiro ficam presos durante anos no pós-produção”.

Foi então que, de forma surpreendente (ou não), entram em cena críticas violentas ao ICA, ao IndieLisboa e até às escolas de cinema. Ninguém saiu ileso: “Tudo isto é muito bonito, de amigos e amigas que se unem para fazer um filme, mas existe aqui um lado de exploração que é importante realçar. Sobretudo quando são as próprias instituições, como os festivais de cinema ou o ICA, que depois se aproveitam deste trabalho que nunca foi pago para ganharem reconhecimento e valor. Sem os nossos filmes, os festivais não são nada. Sem os nossos filmes, o ICA não é nada.”

Especificando as críticas às instituições, explicou-se em palco que apesar do ICA nunca ter financiado um filme seu, correu para publicar nas redes sociais a estreia mundial de “Frágil” no Festival de Ann Arbour, aproveitando-se assim dele para se vangloriar. Já sobre o IndieLisboa, foi relembrado que um filme seu (“Susana“) foi selecionado pelo festival lisboeta em 2018, mas depois retirado da programação porque teria de ser exibido em estreia, impossibilitando a sua passagem, umas semanas antes, na Cinemateca Portuguesa. A situação repetiu-se depois com “Entre Cão e Lobo”, que teria de ter a sessão programada na Calouste Gulbenkian cancelada para poder ser exibida no IndieLisboa.

Distribuição e Exibição

Para Pedro Henriques, as pessoas que fazem filmes em Portugal têm cada vez menos oportunidades de ver os seus próprios filmes em salas de cinema e estão entregues a si próprias: “A maioria das antigas salas fecharam, ou são monopólio de festivais. Os cineclubes entraram em decadência e os multiplexes são territórios de filmes comerciais, a maioria deles grandes blockbusters de Hollywood. Resta-nos ver os nossos próprios filmes em telemóveis ou computadores, nas casas de amigos ou da família. Podemos tentar métodos de distribuição alternativos, claro, mas é preciso muito tempo e paciência. E os muitos cineclubes ou outros espaços artísticos que nem sequer nos respondem? Têm as suas próprias agendas para cumprir, obviamente… A única opção que temos é enviar os nossos filmes para os festivais, mas enviar um filme para um festival, se nos selecionarem, claro, é a lógica da competição até à morte. Como se estivéssemos no ‘Battle Royale. Há um de nós que ganha e os outros que ficam para trás. Os festivais põem a máscara da competição saudável, criam várias categorias competitivas, e atribuem vários prémios. Depois fazem discursos, em que dizem que este ano receberam 10 filmes bons e que foi muito difícil escolher só alguns. Mesmo que atribuam 2 ou 3 prémios em vez de 1, continuam a virar-nos uns contra os outros, umas contra as outras. Para mostrar o filme numa sala de cinema como esta, uma sala a sério, pedem para eu competir com outros 8 realizadores e realizadoras. E eu digo que sim. Todos dizemos que sim.”

Assumindo que o seu discurso tem ele mesmo como alvo, questiona-se então se “será assim tão impossível imaginar um espaço onde apenas podemos mostrar os nossos filmes?”, garantindo que não vai aceitar nenhum prémio por “Frágil” neste IndieLisboa. “Não quero competir, principalmente contra os meus amigos e colegas de profissão”, disse, acrescentando que a hierarquização e “a lei do mais forte”, onde a crítica de cinema também joga o seu papel, começa por ser implantada nos alunos da Escola Superior de Teatro e Cinema. Como resultado dessa competitividade, há muitas desistências no curso, em particular de mulheres: “Na minha turma, se não estou em erro, apenas uma colega minha continua a realizar filmes hoje em dia. É claro naquela escola que uma dose de masculinidade, competitividade e sangue frio são indispensáveis para ser um grande cineasta. Alguns professores de realização, famosos por destruírem os alunos e os seus projetos na praça pública, reforçaram bastante bem esta condição”.  

Entre aplausos e apupos, espontâneos mas também orquestrados, o orador saiu do palanque da sala Manoel de Oliveira, sendo substituído por um grupo de jovens que em palco exibiram uma faixa onde se lia: “Nós não queremos competir com Xs Nossos Amigxs”.

Elementos ligados ao Cinema São Jorge retiraram a faixa, mas esta regressaria, rasgada, e voltaria a ser colocada na posição original, já depois da exibição do filme se iniciar.

Frágil, o filme

Carlos Ramos, programador do IndieLisboa, descreveu “Frágil” no início da sessão como um “Ovni”. No Jornal Público, Jorge Mourinha  usa o termo “happening indiscritível“, e certamente há por aí um outro crítico ou jornalista que se prepara para usar uma daquelas expressões tão em voga: “inclassificável” ou “inenarrável“.

Seja qual for a expressão que se use, “Frágil” é, roubando as palavras de João Botelho na sessão de “O Jovem Cunhal”, cinema. E cinema com pupilas dilatadas, além de uma energia, irreverência, mas também desconforto que só encontramos em alguns trabalhos de outros “putos estúpidos” como os irmãos Ben e John Safdie, Harpo e Lenny Guit, e até mesmo Gabriel Abrantes.

Simples no enredo (que existe), “Frágil” segue um rapaz que tudo o que quer é ir ao “Club”, a discoteca que parece solucionar todos os problemas e anseios. Porém, os amigos não estão nessa onda, e entre afters bem e mal sucedidos, onde não faltam sequências musicais, trips de ácidos e outras drogas, além de rusgas policiais e telefonemas da mãe, ele acaba por render-se aos lamentos, lágrimas e festas na cabeça, todas programadas pelo realizador, que lhe dá todas as coordenadas para a cena.

Absurdo e surpreendente, “Frágil” foi um verdadeiro coelho tirado da cartola deste IndieLisboa, só que ele não é branco e fofinho, parecendo mais uma criação à Eduardo Kac, que encadeia com a sua fluorescência. Só que em vez de manipulação genética, temos a cinematográfica, que, com todas as suas fraquezas e virtudes, está pronta para ser amada e odiada por tudo e todos.

E é caso para dizer, “vamos lá levar isto a sério!”

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