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Sitcom e novela triunfam na idade de ouro “séria” da TV

A era é inquestionavelmente de ouro para a televisão, sobretudo no que toca às obras made in U.S.A. para ecrãs mais ou menos pequenos (não esquecer que hoje a televisão deixou de ser uma mera caixa preta para poder ocupar vários ecrãs de maior ou menor dimensão). Uma era que começou por se demarcar precisamente de tiques tidos como pouco autênticos, como risos gravados ou uma banda sonora insistente em close ups de dois protagonistas. Dentro deste novo paradigma, dois casos de sucesso, carregados de uma identidade latina, conseguiram vingar retratando precisamente os dois géneros mais ridicularizados pelos criadores de televisão “séria”: a sitcom e a telenovela. 

À primeira vista, não há nada que separe One Day at a Time (Netflix) e Jane the Virgin (CW) dos formatos clássicos da sitcom e da telenovela respetivamente, dado que em ambos os casos, os criadores insistem em vincar as suas origens. Mas ao primeiro episódio, está claro que os mecanismos clássicos estão ao serviço de bons argumentistas que calham nutrir um carinho tão especial pelo género que o conseguem replicar ou satirizar na perfeição. Não deixa de ser curioso que estas duas séries são adaptações pós-modernas de dois produtos, esses sim, mais presos às expectativas do género: Gloria Calderón Kellett e Mike Royce trataram de adaptar a sitcom One Day at a Time (1975-1984) trocando a família tipicamente norte-americana por uma cubano-americana; Jenny Snyder Urman tratou de adaptar uma telenovela venezuelana (Juana la Virgen, 2002) num ensaio satírico auto-consciente.  

Em One Day at a Time, os risos gravados e a entrada apoteótica de personagens, das quais se destaca a avó da família (interpretada por Rita Moreno) são constantes, e inicialmente podem levar o espectador a franzir o sobrolho, até, acidentalmente, um pouco mais tarde na narrativa, lhe cair uma lágrima… São vários os temas tão atuais como pertinentes, tendo talvez a homossexualidade de Elena e a depressão de Penelope (Justina Machado, descoberta na seriedade de Six Feet Under, finalmente com honra de protagonista), uma mãe divorciada que serviu o país nas forças militares os maiores pontos recorrentes. Existe aqui uma intenção clara de retratar uma comunidade ainda relativamente desconhecida do grande público, logo estigmatizada. O tom é tão crescentemente anti-Trump como a família é anti-Castro, dado que foi o regime deste que levou à migração da matriarca Lydia para a América dos sonhos em proporção XXL, e é ironicamente o seu extremo que, mais adiante, ameaça a extradição desta, caso não se torne uma cidadã norte-americana. 

Jane the Virgin é menos politizada, e mais decidida a desmanchar o pacote telenovelesco, aproveitando os traços mais característicos deste para os condensar. Por outras palavras, cada episódio está preenchido até não dar mais de intrigas, de dilemas, de reviravoltas de última hora, de confusões, de discussões, pontuadas pela guitarra de Gustavo Santaolalla (Brokeback Mountain), e acima de tudo, por um narrator omnipresente, disposto a chamar o menos óbvio à atenção, com notas textuais, e até uma tradução linguística pelo meio. Basta assistir ao primeiro episódio para se ter percepção do concentrado aqui presente. A série abre com um flashback da avó de Jane a justificar a perda de virgindade com o amachucar de uma flor que nunca mais poderá voltar ao seu estado original. Somos apresentados então ao conjunto principal: de um lado, Rafael Solano, autêntico galã latino e a sua esposa Petra, que anda dormir com o melhor amigo de Rafael às escondidas; do outro Jane, que calha trabalhar no hotel gerido pelo galã. Esta decidiu, com a explicação emblemática da sua avó, preservar a virgindade até ao casamento. Só que a vida vai-lhe já trocar as voltas, ou não estivessemos para todos os efeitos na terra doce das reviravoltas, por vezes assumidamente estapafúrdias, mas onde vale tudo, dado que se pode até entender que há aqui uma homenagem sentida ao objeto original. A sua ginecologista, que calha ser a irmã de Rafael faz uma troca épica: uma inseminação artificial (que devia ser administrada a Petra) por um papanicolau (a Jane). Resultado: a Virgem Jane, tal como a Virgem Maria, fica grávida mantendo-se virgem.   

Em ambos os casos, a conclusão a tirar é clara: assim como não se deve julgar um livro pela sua capa, não se pode julgar uma obra pelo género e pelos artifícios superficiais que possa propagar. Afinal de contas, a era é tão dourada que até estes dois géneros ridicularizados encontraram a sua obra de referência nesta época.