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Quantos judeus são necessários para carregar um caixão? Daniel Burman explica

 
Não, não se trata de uma piada etnocêntrica e, muito menos, antissemita – até porque quem a faz é o insuspeito realizador argentino Daniel Burman, que brinca com as suas próprias raízes em “El Rey del Once”. O filme será exibido neste sábado (01/04) no cinema São Jorge (Lisboa) no âmbito da Judaica.
 
O C7nema conversou com o cineasta no Festival de Berlim, em 2016, onde o projeto fez parte do Panorama. Neste trabalho, ele usou de muito humor indie para mergulhar nas suas origens através de um retrato do bairro judeu de Buenos Aires – o “Once” do título.
 
 
O problema do número dez
 
E, já agora, a resposta à pergunta proposta é… dez. Não por acaso, o título internacional refere-se a The Tenth Man (O Décimo Homem), uma anedota recorrente ao longo do filme repleta de significados.
 
O principal deles é que o seu protagonista, Ariel (Alan Sabbagh), perde toda a fé na paternidade depois do seu pai, o “omnipresente/ausente” Usher, ter deixado de assistir à uma apresentação sua para completar o grupo de dez homens que tinha a missão de carregar o caixão num funeral.
 
O problema da “dezena” se porá muitas vezes – ao ponto de um exasperado Ariel perguntar a um jovem que ele andava ajudar: “Mas por que é que nós precisamos de dez homens para tudo?” A explicação é, grosso modo, esta: “Porque quando Deus mandou os profetas ao Egito eles estavam em número de… dez. Não eram nove, Ariel, eram dez!
 
 
O mito do pai presente
 
Números e simbolismos à parte, um dos grandes temas do filme é a paternidade. No enredo o protagonista, há muitos anos autoexilado nos Estados Unidos, retorna para uma visita aparentemente casual à sua terra natal – quando acaba por se ver enrolado numa vasta teia de acontecimentos manipulados por um pai que nunca se vê – mas que está lá o tempo todo.
 
Sempre me fascinou esse mito do pai presente, que é o assunto principal aqui”, assinala Burman. “Usher é um pai muito presente porque prepara muito bem a sua ausência. A mim me interessava muito construir essa figura do Usher, que prepara toda a cena… para não estar! Pode acontecer a qualquer um ter um pai sem valor, decadente, mas ainda assim fazer figura paterna”, teoriza.
 
 
A mulher sem nome
 
Burman cria um background visual e cultural para inserir o seu personagem – no caso relacionado aos costumes judaicos e com piadas, por vezes, inacessíveis aos “não-iniciados”. Ariel, no progresso da história acaba por quase “submergir” neste universo que tentou deixar para trás. E, certamente, há muito do próprio realizador nisto. “Sou argentino, judeu e sou feliz com isso”, brinca.
 
Há uma noção de perdão ao pai. “Ele não pode seguir em frente com a sua vida enquanto não aceitar o seu pai como ele é. Há um momento crucial quando ele diz ‘você não pode ter um comportamento normal uma vez na vida’? Só quando ele percebe e aceita que isso nunca vai, de facto, acontecer, é que ele pode encontrar o seu caminho e a sua felicidade”.
 
Para além do próprio bairro de Once, das personagens mais interessantes da história é Eva (Julieta Zylberberg), uma mulher “ortodoxa que não fala” ao longo de quase todo o filme. O que está aqui em causa é o patriarcalismo de forma mais genérica. “Ela não fala porque está grávida e não se sabe quem é o pai. O problema não é a gravidez em si, mas o facto de ela não ter um homem – o que significa que o seu filho não terá um nome, uma filiação, uma continuidade”.
 
 
 
Festas em Malibu
 
O cinema argentino segue forte e de boa saúde, com o cinema de autor nos festivais internacionais e exemplares bem-sucedidos comercialmente a nível local – com Burman a acreditar que isto se deve “ao apoio estatal”. Apesar disto, ele gostaria de fazer filmes em Hollywood? “Seria bom andar pelas festas de Malibu”, ironiza. “Mas, tirando isso, não creio que seja a pessoa certa para trabalhar dentro de um sistema industrial. Para mim o mais adequado fora da Argentina seriam países como a Espanha ou o Brasil”.