- C7nema.net - https://c7nema.net -

«Divino amor»: a metafísica em nome do assombro brasileiro

Espécie (crítica) de THX1138 (o marco zero de George Lucas) meets Fala que eu te escuto, programa de evangelização mais popular (e exótico) da TV brasileira, a sci-fi Divino amor saiu de Sundance diretamente para a mostra Panorama do 69º Festival de Berlim como estandarte da inquietação de seu país em relação ao avanço do conservadorismo moral. É um estandarte também da evolução narrativa de seu diretor, Gabriel Mascaro, responsável pelo precioso Boi neon (prémio especial do júri nos Horizontes de Veneza, em 2015). Há nele, em sua mirada futurista, de distopia, uma sequência na qual Joana, funcionária de cartório encarregada de cuidar de separações, vivida por uma Dira Paes em estado de Graça (aquela que vem do Alto, do Olimpo das atuações memoráveis), faz um circuito de exercícios aeróbicos como se estivesse num vídeo da Jane Fonda dos anos 1980. Veste collants, faz posições repetitivas num Kumon de disciplina do corpo. Isso porque a alma de Joana já foi disciplinada há tempos, num pacto selado com Cristo e com a segurança de um mundo avesso aos quebra-molas do antropocentrismo. No mundo dos homens, em ebulição, o prazo de validade de tudo é curto, até das relações amorosas. No mundo do Senhor, tudo fica para sempre, ainda que o preço a se pagar por isso é anular diversidades.

Assim como a ginástica de Joana parece VHS da Turner Classics, o universo religioso em que Joana e o seu marido, o florista Danilo (Julio Machado, sempre afiado, em todas as vezes em que faz da palavra um lugar de perturbação), frequentam também é estilizado. Parece o Festival da Canção de San Remo… ou o Show de Calouros de Silvio Santos (programa muito popular no Brasil). Parece conceitualmente, pois a direção de arte de Thales Junqueira, potencializada na fotografia de Diego García, deixa nítido que existe ali um pensamento muito filosofado (e bem abrasivo) de usar um colorido eletrónico, lisérgico e neon, para aproximar o culto daquele futuro fundamentalista (estamos no Brasil de 2027) de uma rave.

Nessa festa da fé que nunca termina, Joana dá glória aos Céus pelo que tem, mas chora pelo que ainda não veio: um filho. Não por acaso, Danilo se submete a uma série de tratamentos com luz e calor, em seus testículos, a fim de preparar sua “semente” para o Senhor. Há um primeiro tomo – no roteiro escrito por Lucas Paraízo, Mascaro, Rachel Ellis e Esdras Bezerra, marcado por diálogos primorosos – de nos levar a conhecer aquele mundo, como numa radiografia do que o Brasil pode se tornar, tendo a angústia de Joana como bússola. Ser mãe é a Estrela de Belém da sua vida. Todo o primeiro ato é dedicado a conhecermos onde ela vive e quem é. Mas aí vem uma virada… na intervenção do Espírito Santo… Aí, todas as certezas vão por terra e o filme engata uma curva metafísica de mistério, nas linhas do suspense. Tudo fica tenso, tudo parece caminhar para o inusitado, as incursões de Julio Machado ficam ainda mais doídas – e potentes. Ali, nesse ponto do filme, a explosão sinestésica de sensações físicas se casa, dramaturgicamente, com o efeito de surpresa de uma dramaturgia de viradas.

O que vem pela frente é menos catarse e mais delírio fundamentalista, num alerta de Mascaro o que pode ser o amanhã. Delírio que aproxima a atuação de Dira de Maria Falconetti, em A Paixão de Joana D’Arc neste Ordet caboclo.

No fim da projeção de Mascaro, na sala 7 do CineStar, começou a projeção de uma aula de geografia dos afetos também de sangue pernambucano. Dois anos depois da sua passagem pela seleção oficial de Berlim com o Game of Thrones brejeiro Joaquim (2017), Marcelo Gomes regressa às telas alemãs com um documentário sobre a capital brasileira da calça jeans em pleno Nordeste, Toritama. O filme chama-se Estou me guardando para quando o carnaval chegar e teve sua exibição dedicada ao cineasta Eduardo Coutinho, morto em 2004, no Rio.

Não há nele a mecânica palavrosa dos filmes mais famosos de Coutinho, realizados a partir de Santo forte (1999), mas tem algo de Moscou, que o documentarista de culto rodou em 2009, a partir da encenação de uma trupe teatral. Coutinho queria extrair linguagem (e, dela, sentido) de um processo. Gomes faz o mesmo, só que numa dinâmica à la Dziga Vertov, com foco na observação de ritos a partir de uma passagem curta de horas (ou dias, tanto faz) que sintetizem sensorialmente a rotina de Toritama. Sorrisos e gestos de preguiça contam, às vezes, mais do que palavras, com destaque para a sequência em que a câmera faz um corpo a corpo com a imagem de um pequeno empresário que confecciona cortes muito particulares de jeans, usando-se como modelo vivo de suas peças. Gomes consegue transformar o que parecia ser um filme sobre trabalho (e mais valia marxista) numa reflexão existencial – e carnal, numa lógica mais aristotélica do que platónica – acerca das estratégias nossas de apreensão e fruição do Tempo. Em Toritama, o povo não quer ter patrão. Quer ser senhor de sua matéria viva de trabalho. Mas a autonomia, que seria uma carta de alforria, pode virar uma outra forma de escravidão, no terreno da afetividade. Cada um que arque com a sua escolha, pois o bloco da sobrevivência está na rua.

Segunda foi dia de a Sérvia brilha nas telas da Berlinale.69 com um melodrama de uma centelha emotiva incendiária: Stitches (Savovi, no original), de Miroslav Terzic. O filme transforma em ficção, com uma potência trágica avassaladora, um crime histórico (e recorrente) nos países que um dia constituíram a Jugoslávia: o rapto de bebés, ainda na maternidade, onde as crianças eram dadas como mortas para seus pais e encaminhadas para adoção em territórios ricos do Velho Mundo. A trama de Terzic acompanha a angústia de uma mulher, Ana (Snezana Bogdanovic), que há 20 anos celebra o aniversário do filho que teria morrido ainda no berçário, recém-nascido. Só que o Destino bate à porta de Ana com outra versão dos factos. Estaria o menino – hoje já um adulto – vivo?

No sábado serão conhecidos os vencedores do Festival de Berlim. Até agora, a diretora Teona Strugar Mitevska, da Macdónia, desponta como favorita com o belo God exists, Her name is Petrunya.