Terça-feira, 19 Março

O excesso de formalismo pode matar a alma de um filme, diz Martin Scorsese em Cannes


©️Delphine Pincet

O cineasta Martin Scorsese foi distinguido em Cannes com a Carroça de Ouro (Carrosse d’Or), um prémio atribuído pela Sociedade de Cineastas Franceses (SRF) na Quinzena dos Realizadores, uma secção paralela do Festival Internacional de Cinema de Cannes. “Estamos aqui para celebrar a arte do cinema e para mim é uma grande honra ter sido convidado para abrir o Festival“, reconheceu o realizador, sendo aplaudido por uma sala completamente cheia.

Numa cerimónia que contou ainda com a exibição de Mean Streets (Os Cavaleiros do Asfalto), exibido originalmente em 1974 em Cannes, Scorsese explicou: “Foi a minha primeira vez em Cannes e, provavelmente, a melhor. Eu estava muito animado para conhecer tantos produtores, diretores e atores talentosos, pessoas como pessoas como Wim Wenders, Werner Herzog … Eu também me beneficiei do apoio de pessoas como Pierre Rissient (falecido há alguns dias atrás) ou Bertrand Tavernier. O meu anonimato na época permitiu-me desfrutar, com uma liberdade de movimentos que não encontrei depois. Chegando ao Croisette, nem tinha certeza de que Mean Streets poderia ser lançado um dia: Cannes deu-lhe a visibilidade internacional.


Mean Streets

Interpelado por nomes fortes do cinema francês como Jacques Audiard, Bertrand Bonello, Cédric Klapisch ou Rebecca Zlotowski, Scorsese sublinhou o seu desejo de filmar de forma simples, sem nunca ter sucesso. “Sempre me atraiu o tema da amizade masculina e da fraternidade, a questão do bem e do mal em cada um de nós. Mas eu só percebi mais tarde, bem depois do lançamento do filme, que Mean Streets realmente falava da relação entre o meu pai e o seu irmão mais novo. Ao longo das suas vidas, senti-me consciente das suas responsabilidades, vi-os assumirem as consequências das suas escolhas de adultos. O meu pai e a minha mãe tinham seis irmãos e irmãs, o que implicava muitas obrigações. Talvez por isso tenham tido só dois filhos!”

Sobre o Cinema, diz que este “é uma experiência espiritual da categoria de uma catarse, trascendental”, que viu Ordet (A Palavra) apenas uma vez e que ele está lá, nele, o mesmo acontecendo com filmes franceses, americanos e italianos.


Ordet

Já sobre a sua maneira de filmar, esta está relacionada com a sua infância e adolescência, relembrando que vem da classe trabalhadora, cresceu numa casa sem livros e sem hipóteses de fazer desporto devido à asma: “Desde a infância, sou fascinado por imagens de cinema e música, que eram as únicas maneiras de me abrir para o mundo. Desenhava a toda a hora e, pouco a pouco, esses desenhos  tornaram-se como storyboards. Ainda trabalho assim hoje. Para cada filme novo, faço todos os planos duas semanas antes das filmagens.” Embora exista esta preparação, Scorsese vangloria a simplicidade de filmar, afirmando que gostaria de trabalhar como Eastwood, Renoir ou Buñuel: “Clint Eastwood é como Jean Renoir e Luis Buñuel. Gosto da aparente simplicidade dos seus filmes, que dão a impressão de que se fazem sozinhos embora seja o resultado de um grande profissionalismo, com uma preparação hiper-precisa. Adoraria trabalhar como eles“.

Reconhecendo as dificuldades no processo de montagem, e assumindo sucessivas quezílias com a sua editora Thelma Schoonmaker (na imagem acima com o cineasta), Scorsese carimba que o excesso de formalismo pode matar a alma de um filme e que um cineasta tem que saber como fazer sacrifícios no seu estilo para preservar a intensidade da história. “Contaram-me uma história sobre Rodin: quando ele terminou a sua estátua de Balzac, todos ficaram extasiados com o realismo das mãos e não viram o resto. Então, Rodin pegou num machado e cortou as mãos para que o público pudesse apreciar o trabalho como um todo e não se focar num detalhe. Não sei se terei coragem de cortar as minhas mãos …

A 50.ª edição da Quinzena dos Realizadores decorre de 9 a 19 de maio.

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