Sexta-feira, 19 Abril

Luís Miguel Cintra: “O mercado de trabalho para mim não existe”

 O mercado de trabalho para mim não existe. Não sei o que é. O mercado de trabalho é zero. Portanto, não interessa. O que existe de facto é o trabalho de ator, um trabalho que tem a ver com a própria personalidade. O material de trabalho é a nossa pessoa. Portanto, se a pessoa envelhece provavelmente tem um destino diferente. Mas vamos esperar o quê? Que os mais novos inventem personagens de velhos?  Não conhecem. Não têm conhecimento de como funciona um velho. Portanto, a imaginação deles não vai para velhos. Por isso temos de nos resignar, como em tudo na vida.”. Foram estas as palavras de Luis Miguel Cintra em Cannes ao C7nema, quando respondeu à questão sobre como é o mercado de trabalho de um ator a lidar com o envelhecimento.

O ator português marcou presença no Croisette para apresentar Ilha dos Amores, de Paulo Rocha, filme que regressou ao festival inserida na secção Cannes Classics da 71ª edição do Festival de Cannes. Sobre esse regresso, trinta e seis anos depois da estreia no festival, Cintra mostrou sensações mistas: “Tem que se pensar que este filme filme foi feito há trinta e tal anos, quase quarenta. Para mim isso significa uma distância – entre o dia de hoje e da exibição original do filme – de quase a minha vida inteira, da vida ativa, digamos. Portanto, tenho uma emoção negativa, por sentir que já acabou. Passaram estes anos, aproveitei o que pude aproveitar e esse é o sentimento que as pessoas têm quando envelhecem – e é um bocadinho chato. Por outro lado, tenho ao mesmo tempo um orgulho muito grande porque no meio do estado das artes, que é tão desesperante, no sentido que é tudo dominado pelo mercado, um filme como este funciona como uma pérola raríssima. Uma relação absolutamente sincera e um desejo profundo das pessoas que participaram naquilo, de quererem fazer uma coisa que nunca tinham visto feita, que não sabiam como se fazia e estavam a tentar com a confiança e respeito de que todos eram pessoas com valor; os diretores de fotografia, a música do Jorge Peixinho, os diálogos da Luisa Neto Jorge, os cenários da Cristina, os atores que estavam a representar. A própria figura do Wenceslau, um artista também, que escrevia livros, que era um escritor para além de ser um oficial da marinha. Depois estava-se a fazer uma coisa que partia da ideia do abandono da pátria (…) em busca de uma pátria ideal que não tinha a ver com nacionalismos, mas com o lugar da verdade ou o do coração, ou qualquer coisa desse género. Soa muito a coisas que foram espezinhadas durante muitos anos. Mas a gente continua a acreditar que a história continua. Que umas coisas acabam para começarem outras novas. Só agora mais velho consigo ter essa sensação. Por isso eu tiro daqui o proveito pessoal que me interessa. Não tenho nada a ver com produção, não tenho nada a ver com carreiras. Tem a ver com o gosto de ter feito uma coisa que era muito importante para nós e que faziamos como algo que queriamos dar ao público”.

Ilha dos Amores

Visivelmente emocionado, Cintra não tem problemas em dizer que tem “pena de não ter ainda mais tempo para fazer ainda mais coisas” e que “tem a certeza que daqui para a frente” poderá fazer muito pouco. Ainda sim, mostra-se orgulhoso do seu último trabalho no Cinema: “Tenho muita honra em fazer figuração, uma passagem que não demora um minuto sequer, no filme do Sérgio Tréfaut que estreou  agora [Raiva]. Gosto muito do filme. Gosto muito das pessoas que estão no filme, que é fotografado por um velho, o Acácio. Um fotógrafo absolutamente genial com quem comecei; o primeiro filme que fiz tinha a fotografia do Acácio de Almeida, por isso quando o encontro tenho sempre uma ternura muito grande por ele. E fiquei contentíssimo em ver que ele fez uma fotografia tão linda para o filme do Sérgio que estreou agora no Indie. Colocam-me no lugar de ancião sábio. Eu disse que gostava de ser menos sábio“.

Recorde-se que filme de Paulo Rocha foi exibido numa cópia recentemente restaurada pela Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, que teve origem na digitalização 4K com wet gate de interpositivos de imagem e som em 35mm tirados num laboratório japonês em 1996. A correção de cor digital foi feita por La Cinemaquina usando como referência uma cópia de distribuição de 1982. O restauro digital da imagem foi feito pela IrmaLucia Efeitos Especiais.

Notícias