Sexta-feira, 19 Abril

Novo filme de Miguel Gomes é selecionado para o Festival de Cannes

O novo trabalho do consagrado realizador de Tabu, As Mil e uma Noites, é um filme constituído por 3 volumes com os títulos O Inquieto, O desolado e O Encantado e terão estreia mundial na Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes, que decorre  entre 14 a 24 de maio. 

Não sendo uma adaptação do famoso livro de histórias de origem árabe, o projeto inspira-se na sua estrutura, fazendo a interligação, nas suas três partes, com a realidade contemporânea portuguresa (ver trechos abaixo) – nomeadamente o período de austeridade a que o país foi submetido em 2013 e 2014. 

As Mil e uma Noites é uma co-produção entre a o Som e a Fúria, a Shellac Sud (França), a Komplizen Film (Alemanha) e a Box Productions (Suíça) e conta com o apoio do Instituto do Cinema e Audiovisual, do Centre National de la Cinématographie (França), do Office National de la Culture (Suíça), do programa Eurimages do Conselho da Europa e com e dos canais de televisão RTP, Arte (França), ZDF (Alemanha) e TSR (Suíça).

Seguem abaixo alguns excertos que permitem antever uma obra com generosas doses de ironia…

As tristes histórias de Portugal

Num país europeu em crise, Portugal, um realizador propõe-se a construir ficções a partir da miserável realidade onde esta inserido. Mas incapaz de descobrir um sentido para o seu trabalho, foge cobardemente, dando o seu lugar à bela Xerazade. Ela precisará de ânimo e coragem para não aborrecer o rei com as tristes histórias desse país. Com o passar das noites, a inquietude dá lugar à desolação e, a seguir, ao encantamento. Por isso Xerazade organiza as histórias que conta ao rei em três volumes, começando sempre pela sentença…”Oh venturoso Rei, fui sabedora de que num triste país entre os países…

Volume 1, O Inquieto

Oh venturoso Rei, fui sabedora de que num triste país entre os países, onde se sonha com sereias e baleias, o desemprego propaga-se. Em certos lugares, a floresta arde noite dentro apesar da chuva que cai; homens e mulheres anseiam por lançarem-se ao mar em pleno Inverno. Por vezes há animais que falam embora seja improvável que os escutem. Neste país onde as coisas não são o que aparentam ser, os homens do poder passeiam-se em camelos e escondem uma permanente e vergonhosa erecção; aguardam pelo momento da colecta de impostos para poderem pagar a um certo feiticeiro que…“. E vendo despontar a manhã, Xerazade calou-se.

Volume 2, O Desolado

“Oh venturoso Rei, fui sabedora de que uma juíza aflita chorará em lugar de ditar a sua sentença, na noite de três luares. Um assassino em fuga vagueará pelas terras interiores durante mais de quarenta dias e teletransportar-se-á para fugir à Guarda, sonhando com putas e perdizes. Lembrando-se de uma oliveira milenar, uma vaca ferida dirá o que tiver a dizer e que é bem triste! Moradores de um prédio dos subúrbios salvarão papagaios e mijarão em elevadores, rodeados por mortos e fantasmas; mas também por um cão que…“. E vendo despontar a manhã, Xerazade calou-se.

– “Diabo de histórias! É certo que continuando assim minha filha acabará degolada!” – pensa em Bagdad o Grão-Vizir, pai de Xerazade…

Volume 3, O Encantado

No qual Xerazade duvida que ainda consiga contar histórias que agradem ao Rei, dado que o que tem para contar pesa três mil toneladas. Por isso foge do palácio e percorre o Reino em busca de prazer e encantamento. O seu pai, o Grão-Vizir, marca encontro com ela na roda gigante, e Xerazade retoma a narração: “Oh venturoso Rei, fui sabedora que em antigos bairros de lata de Lisboa, existia uma comunidade de homens enfeitiçados que, com rigor e paixão, se dedicava a ensinar pássaros a cantar…”.

E vendo despontar a manhã, Xerazade calou-se.

 

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