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A descoberta do monumental – a epopeia de Bernardo Bertolucci (1976-1987)

A morte do italiano Bernardo Bertolucci é uma perda tremenda para a 7ª arte. O C7nema relembra alguns momentos da carreira de um dos maiores realizadores de sempre. Depois da primeira parte [1], dedicada aos seus dez primeiros anos de carreira e que terminava com um furacão chamado O Último Tango em Paris, o cineasta ficaria quatro anos sem filmar até retornar com algo completamente diferente – um épico chamado 1900. Este seria o primeiro dos seus panoramas históricos, inaugurando uma nova época em que realizaria apenas quatro filmes em 11 anos, dos quais dois deles inscreveram-se de forma definitiva na história do cinema.  [2]

Um monumento à classe operária

Depois do intimismo do seu último trabalho, 1900, exibido pela primeira vez fora de competição no Festival de Cannes, em 1976, trazia mais de três horas de filme (variáveis, conforme o país), um elenco internacional de luxo e um ambicioso panorama da história da Itália na primeira metade do século XX.

A obra é fortemente marcada pela política e pela sexualidade. Em sintonia com as novas tendências historiográficas estabelecidas nos anos 60, o cineasta constrói o seu mosaico a privilegiar claramente uma abordagem social e das classes desfavorecidas, em parte sacrificando os episódios conjunturais. O que interessa é mostrar como as diferentes facções políticas se interligavam com a vida quotidiana dos camponeses, que aderiam em cada vez maior número ao comunismo como forma de combater os abusos dos patrões, por sua vez próximos do fascismo.

Apesar do tom nitidamente desfavorável ao fascismo, com artifícios dramáticos que o levam novamente a um discurso próximo do proselitismo, a obra não deixava de mostrar as incoerências e fragilidades dos trabalhadores rurais. 1900 mostra como a ameaça vermelha era bem real na primeira metade do século XX e os conservadores muito tiveram de fazer para contê-la. Resta espaço para guerras locais, tumultos, greves e escaramuças diversas. Diz o próprio Bertolucci: “Parma, Emilia, eram tradicionalmente comunistas e eu estavam muito próximo dos camponeses (…) ia com eles às suas demonstrações. Parte da família do meu pai era da zona rural”.

Ao mesmo tempo, segue-se a trajetória de dois rapazes nascidos na mesma estância. Olmo é filho bastardo pertencente à classe trabalhadora; Alfredo é o neto do patrão (Burt Lancaster). Na idade adulta eles serão interpretados por Robert de Niro e Gérard Depardieu. Os seus destinos serão para sempre interligados, tendo uma amizade marcada por altos e baixos mas que sobrevive às enormes reviravoltas da política italiana e internacional ao longo destes quase 50 anos de história.

1900, que no seu elenco incluía ainda nomes como Burt Lancaster, Donald Sutherland, Dominique Sanda, Stefania Sandrelli e até o veterano Sterling Hayden, teve uma aclamação mundial. Como curiosidade, refere-se a participação de Paulo Branco como ator.

Heroína, incesto e polémicas. La Luna (1979)

La Luna, lançado em 1979, marca o retorno do realizador ao universo mais intimista e, só para variar, cercado de polémicas. Apesar das críticas de que foi alvo, tanto por razões morais quanto cinematográficas, foi um sucesso comercial.
A história trata de um adolescente (Matthew Barry) que vive nos Estados Unidos com a família, mas após a morte do pai muda-se com a mãe (Jill Clayburgh), uma cantora de ópera instável, para a Itália. Sem amigos nem maiores referências, nutre com ela uma relação de amor e ódio. A história, ganha outros contornos quando ele se torna adicto e a mãe descobre. Unidos por um relacionamento em que ambos respeitavam muito pouco os limites um do outro, este acaba por se tornar incestuosa.

La Luna era uma obra muito marcada pelos conceitos da psicanálise, ainda bastante influentes na altura. A construção dramática da história, marcada pela morte do pai e as consequências de um desejo pelo progenitor feminino não devidamente resolvido, evocava claramente a teoria do Complexo de Édipo de Freud. O próprio projeto começava, de facto, numa imagem da infância do realizador, reproduzida nas primeiras sequências da obra, como o próprio explicou: “… a fusão, na minha memória, do rosto de minha mãe com o da lua. Uma espécie de sonho. É a minha lembrança mais antiga. Lembrei-me sem entender muito bem o que significava. Fiz o filme para tentar compreender.”

As controvérsias começaram logo na primeira exibição do filme, no Festival de Veneza. Para além das vaias, houve até o caso do antigo diretor do evento a abandonar a projeção a meio a gritar “um horror!“. No dia seguinte, nos jornais, outros críticos chamaram o filme de mesquinho e o realizador de pretensioso. Mas, dois meses depois, as críticas começariam a melhorar – particularmente em França e Espanha. No El País falava-se de poesia, no Le Monde em refinamento estético, no Rouge num filme fascinante. Uma boa síntese viria um ano depois de um crítico do Jornal do Brasil, Ely Azeredo, que observou que para um filme que começou no divã de um psicanalista, La Luna mostra-se surpreendemente livre do confessionalismo fechado em memórias e obsessões pessoais (…) O argumento, embora escrito em família, com a colaboração da mulher, Clare Peploe, e de um irmão do cineasta, Giuseppe, e marcado por coisas muito intimas (lembranças da terra natal, Parma; o gosto pelo melodrama e pela música de Verdi), escapa aos limites autobiográficos.

As peripécias do fabricante de queijos. Tragédia de Um Homem Ridículo (1981)

Dois anos depois de La Luna o cineasta apresentava no Festival de Cannes, em 1981, a sua Tragédia de um Homem Ridículo, obra que daria a Ugo Tognazzi o prémio de melhor ator. O filme segue a história de um empresário proprietário de uma fábrica de queijos que, subitamente, é confrontado com o sequestro do filho – passando a correr o risco de ficar sem nada para pagar o resgate. Ao mesmo tempo, a obra aborda a questão do terrorismo ou que o realizador, na altura, designava como o reflexo condicionado de uma sociedade que aceita o terrorismo como sua penitência quotidiana.

E explica assim a sua origem: “No início das filmagens olhei à volta e achei que estava cercado de gente ridícula, os meus velhos amigos e colaboradores. Olhei no espelho e achei um outro sujeito ridículo. Primo (o protagonista), acredito, também julga-se assim”, disse ele. Acrescentando: “Talvez fosse mais exato dizer que Primo é apenas um anti-herói, um batalhador, que montou uma fábrica de queijos servindo-se talvez de umas pequenas ilegalidades e que hoje se satisfaz com o milagre de ver o líquido transformando-se em sólido: o leite em queijo, o queijo em dinheiro. É um filme sobre o dinheiro”. A obra teve boa repercussão na altura, embora sem o impacto dos seus trabalhos anteriores.

O épico da solidão

(contém spoilers)

Seis anos depois de Tragédia de Um Homem Ridículo, onde se deu uma tentativa frustrada de adaptar uma história noir de Dashiell Hammett, Bertolucci faria um ressurgimento impressionante com um dos mais belos filmes dos anos 80: O Último Imperador. Aqui consagrava-se àquilo que saberia fazer como ninguém – dar uma dimensão épica a uma história muito íntima e com uma beleza visual que não deixou ninguém indiferente – nem mesmo uma Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, normalmente pouco interessada em cinema mundial e que concedeu nove Oscars à obra, incluindo nas categorias Melhor Filme e Melhor Realizador.

O pano de fundo histórico é dos mais interessantes. No início do século XX, com as potências ocidentais a concluir o seu processo de implantação ideológica global, nenhum dos mais antigos impérios do mundo sobreviveriam à 1ª Guerra Mundial – entre eles alguns ancestrais, como os Otomanos na Turquia e os Habsburgos na Europa. Ainda antes da guerra, em 1911, tinha chegado a vez da dinastia chinesa Qing ruir – após 267 anos de existência. Mas, como que por um requinte de crueldade, a nova república de Sun Yat-sen não elimina sumariamente o imperador, então com três anos de idade – apenas o proíbe de sair da Cidade Proibida – decisão que duraria até 1924.

E é nesta proibição que começa essa história fascinante e intimista sobre solidão, tristeza e, em última análise, desmaterialização, de um homem a quem sempre foi tirado todas as possibilidades de afeto e que o condenou a uma trajetória em completo e permanente descompasso com as rápidas transformações do mundo que o rodeia. Uma vez instituída a república, Pu Yi vegetaria numa luxuosa prisão, servido por centenas de eunucos e que, gradualmente, e na medida que cresce sem um único amigo da sua idade, vai se dando conta do seu mundo de faz de conta. O clímax desta consciencialização dá-se no dia em que é impedido de sair para ir ao funeral da mãe, de cuja convivência já havia sido privado.

Já a viver como uma espécie de playboy (aqui interpretado por John Lone), sustentado pelo Estado fora da Cidade Proibida, ele fará uma desastrada tentativa de se afirmar como pessoa e encontrar o seu lugar no mundo, aliando-se aos japoneses na 2ª Guerra como forma de recuperar o título de imperador – mas desta vez com um verdadeiro poder associado. O resultado foi ter-se transformado em fantoche dos japoneses enquanto estes mandavam e desmandavam na Manchúria, terra de onde se tinha originado a dinastia Qing. Os nipónicos tiram-lhe também aquela que talvez tenha sido a sua maior alegria – a sua esposa Wan Jung (Joan Chen). Já na década de 1960, com grupos de comunistas a alternarem-se no comando do país (e a cometer as típicas reviravoltas dos jogos de poder), o último imperador sai da prisão, onde estava encarcerado como prisioneiro de guerra. A cena final é arrasadora: o agora jardineiro Pu Yi compra um bilhete para visitar a turística Cidade Proibida. Mais uma vez, perece perante o seu próprio simulacro.

Oscars e 3D

Este clássico cheio de estilo beneficiou de um amplo consenso de crítica e público na altura e todos os Oscars que recebeu foram merecidos (também recebeu Baftas, Globos de Ouro e uma série de outros galardões). Os Oscars destacaram, para além do trabalho de Bertolucci e o de Melhor Filme (entregue ao produtor Jeremy Thomas, colaborador habitual do realizador), a imensa qualidade da Fotografia do omnipresente Vittorio Storaro, a música fabulosa de Ryuchi Sakamoto e David Byrne (com uma canção de Cong Su), a direção de arte (de Ferdinando Scarfiotti, Bruno Cesari e Osvaldo Desideri) e guarda-roupas (de James Acheson, que repetiria a dose no ano a seguir com As Ligações Perigosas e em 1995 com Restauração), o argumento adaptado pelo cineasta e por Mark People (de Profissão Repórter, de Antonioni), a edição de Gabriella Cristiani (na sua terceira colaboração com o cineasta) e o som.

No Festival de Cannes de 2013, o próprio Bernardo Bertolucci apresentava uma versão em 3D da obra. Normalmente desconfiado de certas utilizações das novas tecnologias, mas plenamente a favor delas como princípio, o realizador afirmou na altura que a sua obra tinha ganho muito com a inovação. Resta esperar que alguma distribuidora corajosa se digne a lançar esta versão por cá, já que O Último Imperador mantém a sua beleza intacta.