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«The Duke of Burgundy» por José Raposo

  

Afirmar que não haverá filme semelhante a The Duke of Burgundy a estrear nos tempos mais próximos não tem que soar necessariamente a lamento. A sua singularidade assinala antes os primeiros traços da maturidade cinematográfica de Peter Strickland, um realizador sem par no panorama britânico que tem aqui, na terceira longa-metragem, o seu filme mais conseguido.

A obsessão pela textura do som e a abertura de rupturas na trama narrativa provocadas pela aproximação ao cinema experimental, assinaturas estilísticas que fazem de Strickland um realizador de culto, encontram em The Duke of Burgundy“, uma obra que é todo um universo, um maravilhoso objeto de expressão. Berberian Sound Studio, um filme esquisito e esotérico centrado no processo de dobragem de um filme de horror italiano, onde a potência do som é todo um programa dedicado ao pastiche do “horror barroco à giallo”, é o modelo esquemático no qual “The Duke … ” se baseia: a intensidade formal do filme de género e a sofisticação conceptual da obra são os seus méritos mais marcantes, numa elegante evolução em relação à obra anterior.

A recepção do cinema de género na obra de Strickland consiste em larga medida na criação de um universo contido em si mesmo, num sistema com as suas próprias regras e códigos. Em “Berberian…” ainda havia resquícios de uma causalidade com a realidade relativamente estável, nomeadamente na maneira como Strickland apresentava um panorama dos bastidores das dobragens do cinema de horror assente em traços mais ou menos realistas; aqui, não faz muito sentido olhar para o filme a partir à procura de alguma familiaridade em relação aos assuntos e costumes da sociedade banal.

The Duke …” é um poderoso feitiço destinado a revitalizar a imaginação do cinema, tantas vezes capturada pela aridez do cinema internacional contemporâneo: Cynthia (Sidse Babett Knudsen) e Evelyn (Chiara D’Anna) passam os dias junto à natureza, contemplando os insondáveis mistérios do mundo sensível em agradáveis passeios de bicicleta pelo campo. No centro deste universo estão as borboletas, maravilhosos insetos de asas delicadas, rainhas polinizadoras do doce desejo libertino. Cynthia e Evelyn dedicam as suas vidas à lepidopterologia, estudo das borboletas e um ramo particular do campo da entomologia; no centro das suas investigações está a espécie que dá o título à obra, por sinal a única presença masculina no filme. Quando se desvanece a febre da racionalidade taxonómica que as impele a classificar as borboletas da região de acordo com as suas mais secretas características, Cynthia e Evelyn entregam-se a elaborados jogos sadomasoquistas.

É neste exotismo hermético que o filme de Strickland brilha de forma mais intensa; quanto mais o filme se fecha nos interiores luxuosos da enorme mansão onde o casal se afunda no infinito prazer erótico, mais expressivas se tornam as possibilidades de uma existência abstracta, submissa ao impulso de passar para o lado de lá das aparências. Os grandes planos sobre os objetos de superfície são sempre alusivos à materialidade do desejo, e em vez de se encerrarem sobre si mesmos penetram a membrana da realidade como quem entra num portal de sensações. A banda sonora é decisiva nesse aspeto, mais apoiada no formato canção do que o anterior “Berberian …”; mas é enorme o trabalho dos Cat’s Eyes, o grupo responsável pelo “score”, quanto mais não seja pela forma como evocam um ambiente hipnótico e próximo do conto de fadas.

Nos momentos em que Cynthia e Evelyn se recolhem no casulo da mansão, com os interiores soturnos e a opulência do ambiente a lembrar As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (comparação aliás duplamente justificada dado o universo feminino de ambos os filmes), torna-se evidente a precisão da encenação de Strickland. Jogo curioso, com o realizador a fazer coincidir as marcas no chão que Cynthia e Evelyn usam nas suas fantasias, com as suas próprias marcações, que lhe servem de orientação na direção das cenas. Os diálogos têm um papel fulcral para a construção daquele universo (o que não será um feito menor tendo em atenção a exuberância visual de todo o filme); e a sedução magnética dos diálogos ficou muito a dever à performance de duas magníficas atrizes. O humor que conseguem extrair do absurdo da situação é um exemplo da forma como concretizam diferentes registos dentro daquelas regras pré-estabelecidas. Há justamente um rigor na escolha de palavras que não é muito comum no género de cinema que paira sobre o “The Duke …” como uma sombra. O modelo aqui é a “sexplotiation“, com Jess Franco no lugar de Mario Bava. O projeto começou justamente como um remake de Lorna the Exorcist, mas à medida que foi ganhando forma acabou por adquirir a sua própria autonomia.

A grande referência é, contudo, Stanley Brakhage, cineasta canónico no campo do cinema experimental. Mothlight, obra realizada sem o recurso a câmaras de filmar e a partir da intervenção direta na película – sobre a qual são coladas asas de borboleta (e pétalas, e outros elementos do mudo natural) -, é aludido numa das sequências mais memoráveis do filme. Trata-se de uma sequência de um sonho alucinante, e a aparição das borboletas de Brakhage provoca um violento desarranjo narrativo na compostura dramática da obra.

Strickland faz destas ruturas um dos elementos fundamentais do seu cinema (em “Berberian …” fez gesto semelhante, quando citou Outer Space, de Peter Tscherkassky, uma obra prima do cinema de horror contemporâneo), e aqui o triunfo passa muito pela forma como esse rasgão faz parte da própria dinâmica do “role play” sadomasoquista.

O melhor: O universo criado por Strickland.
O pior: Nada a assinalar.


José Raposo