Terça-feira, 16 Abril

«The Look Of Silence» (O Olhar do Silêncio) por Paulo Portugal

Já conheciamos as atrocidades e a selvajaria das milícias civis aos supostos ‘comunistas’ na Indonésia de Suharto e do seu ‘regime de exceção’ colocado em marcha em 1965. Vimos as chocantes encenações da matança ilustradas em O Ato de Matar, inexplicavelmente sem o Óscar de Melhor Documentário na edição do ano passado. Foi esse o resultado dos largos meses de trabalho de campo do americano radicado na Dinamarca Joshua Oppenheimer. Diante do aclarar dos factos do genocídio que matou um milhão de almas com a conivência dos Estados Unidos, o realizador de 40 anos abriu espaço em The Look Of Silence para um ajuste de contas com o silêncio e as circunstâncias da morte de uma das vítimas por parte do seu irmão mais novo e a sua família. O resultado é uma nova brilhante peça jornalística, plena de acutilante linguagem cinematográfica e honorável disputa de direitos humanos que nada esmorece diante do anterior. Para a história fica este valioso díptico que nos faz abrir bem os olhos para além de todo o silêncio da morte.

Desta vez, Joshua substitui-se a Adid, o irmão mais novo de uma das inúmeras vítimas. Ao mesmo tempo que este optometrista de profissão apura a visão dos carrascos confronta-os com perguntas incómodas sobre as execuções que tingiram o Serpent River e que impossibilitaram a pesca devido à ingestão de carne humana pelo pescado. “Tu fazes perguntas bem mais profundas que o Josh” dirão, incomodados, os visados por mais de uma ocasião, chegando mesmo a interromper as entrevistas.

Formalmente, existe entre The Act of Killing e The Look of Silence um lado de temática complementar e até de irmandade, com o lado comum da impunidade com que os ex-membros das milícias sorriem ao explicar como operavam na tarefa heroica de aniquilar todos aqueles a quem fosse colocada a etiqueta de ‘comunistas’. Não que isso tivesse sequer de ser comprovado, bastaria uma acusação, ou premonição, sabe-se lá baseada em que pressupostos.

Nestes relatos, sempre visivelmente animados, descreve-se com detalhe como homens e mulheres eram esventrados, como era executado o golpe de misericórdia da catana no pescoço, mas também como se descrevia o interior dos seios femininos depois de serem separados do corpo. E até a descrição da morte do irmão de Adid, depois de resistir a inúmeros golpes e de ter sido levado da sua casa no dia seguinte pelos carrascos que acabaram por executar-lhe o golpe fatal ao cortar-lhe o pénis. E diante do horror que provocavam, estes homens assumem só não enlouqueciam porque bebiam de imediato um copo do sangue se brotava das gargantas abertas.

Sem qualquer vislumbre de ajuste de contas, Adid oferece dioptrias em troca desse apuramento do passado, como se o apuramento da visão ajudasse também ao aclarar os factos pelos assassinos. Desse olhar do passado e do silêncio que não se deseja questionado, ficamos com uma das imagens finais em que o familiar da vítima enfrenta o assassino e a sua filha e o saúda num fechar de ciclo selado pelo perdão e a paz.

Sem o recurso a qualquer alavanca emocional, apenas movido pela vontade de saber, Oppenheimer nunca esquece o cinema em diálogos incómodos, onde se deseja quebrar o silêncio sobre o passado em que o genocídio era encarado com heroísmo; seja pelo recurso à metáfora visual, ao rigor da mise en scène. Por isso mesmo, no conjunto da fortíssima mensagem The Look of Silence fica, tal como The Act of Killing, paredes meias com a obra-prima.

O melhor: o lado inquisidor que leva frequentemente os visados a olhar para o ecrã e questionar o realizador pela ousadia das perguntas.
O pior: um filme que será sempre subalternizado pela existência do seu irmão gémeo. Embora não deixe de ser tão urgente como o primeiro.


Paulo Portugal
(Crítica originalmente escrita em janeiro de 2015)

Notícias