Quinta-feira, 28 Março

«Leviathan» (Leviatã) por Fernando Vasquez

É curioso como nesta altura em que a Rússia volta a andar pela boca do mundo pelas piores razões, o seu cinema esteja a atravessar umas das fases mais produtivas das ultimas décadas. Após algumas ameaças, o grande grito foi lançado em 2010, com Aleksey Popogrebskiy a receber três prémios de uma assentada em Berlim com How i ended this summer. Desde então, é raro o programa de festival internacional que não incluiu e contempla várias obras da região.

2014 não só não foi exceção, como terá sido possivelmente o mais notório deles todos. O mais recente trabalho de Andrey Konchalovskiy, The postman´s white nights, foi um sucesso estrondoso, saindo de Veneza com dois dos principais prémios, Name me de Nigita Sayfullaeva tem sido frequentemente citado como uma das maiores revelações do ano, e Angels of revolution de Aleksey Fedorchenko parece também destinado aos mais altos voos.

Apesar de todo o sucesso existe algo de profundamente perturbador em todos estes exemplos: um sentido critico demasiado tímido e um medo intrínseco de um regime que não sabe lidar com visões alternativas. Tal fenómeno seria bem mais assustador se não existisse um homem chamado Andrey Zvyagintsev. Com a estreia do seu ultimo filme em Cannes, que venceu o premio de melhor argumento, a coragem do cineasta nunca mais há de ser posta em causa.

Leviatã narra-nos a luta de um homem, Kolya (Alexey Serebryakov) contra a venda da sua casa e terreno, desejado por um politico local extremamente corrupto (Roman Madyanov). À medida que o cerco se aperta, Kolya procura ajuda no seu velho amigo, Dmitri (Vladimir Vdovitchenkov), um advogado de Moscovo famoso por não se vergar às estruturas do poder russo. No entanto, não só a luta se revela como desigual como a chegada em cena de Dmitri acaba por também por à prova a harmonia familiar de Kolya.

Longe do estilo lento e refletido a que Zvyagintsev nos habituou, Leviathan (Leviatã) é o mais acessível trabalho do cineasta russo. No entanto, é também o mais provocador e corajoso. A corrupção do regime, em particular no meio rural, é dissecado aos mais ínfimo detalhe, mostrando-nos como estado e igreja trabalham em conjunto para aterrorizar os seus cidadãos. O poder demasiado limitado da justiça, mesmo nas mãos de um dos mais destemidos cavaleiros, é profundamente agonizante.

Todo este enredo torna-se superlativo com uma série de performances de luxo, em particular por parte de Serebryakov, no papel de Kolya, e Madyanov, que encarna uma personagem extremamente falível e desprezível. Elena Lyadova, que assume o papel da mulher de Kolya, acrescenta uma poderoso toque de subtileza e sensualidade, que com uma postura tímida e um semblante triste que representa muito do desespero da situação.

Se é no guião que o filme assume tons mais agitadores, outro dos grandes êxitos de Leviatã está no processo. A direção de fotografia de Mikhail Krichman é tão assombrosa como lúcida, mostrando-nos o noroeste da Rússia como uma terra tão desoladora como magica e cativante. O lago junto ao terreno de Kolya, com a Finlândia ali tão perto, é o palco onde se desenrola toda a ação. Para Krichman, a região é tão relevante como as personagens, usando muitos dos detalhes e contornos da paisagem para demonstrar o estado de espírito dos heróis e vilões, ao mesmo tempo que personifica toda a angustia e melancolia da vida na região.

Acima de tudo, Leviatã é um retrato da corrupção na Rússia como nunca antes vimos. Numa altura em que o poder ilimitado de Vladimir Putin e o conservadorismo da sociedade russa, progressivamente influenciado pelo crescente poder da igreja ortodoxa, o simples facto de que Zvyagintsev se aventurou a produzir tal filme é de enaltecer. A valentia e vontade de desmascarar o regime vigente mostra-nos uma nova faceta de um realizador que, para além de multifacetado e extremamente competente, se revela agora também como o mais destemido do momento.


Fernando Vasquez

(Crítica originalmente publicada em dezembro de 2014)

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