Num dos retalhos do documentário de Pedro Fidalgo e Nelson Guerreiro, Mudar de Vida (que integrou a programação do último Indielisboa e a primeira edição do MUVI Lisboa), vemos o produtor musical José Mário Branco, que sempre havia “condenado” o fado, considerando-o numa obra salazarista de “calar um povo oprimido” ou simplesmente vaidade burguesa, a trabalhar com o fadista Camané na gravação do seu álbum Sempre de Mim (2008). Estranho, não? O que parece ser hipocrisia é explicado pelo anterior músico de intervenção como uma alteração do seu próprio juízo. A ideia demoníaca foi drasticamente abalada com o contacto e a descoberta da voz do fadista Camané, desde o seu timbre até à sua identidade perfecionista em busca do tom irrepreensível e dos poemas cantados mais belos que se dão pelo nome de letras.

No novo filme de Bruno de Almeida, Fado Camané, somos remetidos ao “fadismo” do próprio artista, desde o seu próprio processo criativo (as imagens da gravação do álbum anteriormente mencionado, ao lado de José Mário Branco), até à dissecação do homem por detrás da arrepiante e emocionante voz, através de uma entrevista efetuada pelo jornalista João Bonifácio para o jornal O Público. Sobre tons cinza e de imagens propositadas de baixa resolução, a obra busca criar uma modesta aproximação do espectador com a sua figura central, convidando-o a conhecer a mesma através do seu vórtice artístico, a sua cumplicidade para com a melodia libertada da guitarra portuguesa e a coordenação de seu novo produtor musical.

Aqui não somos remetidos aos segredos de Camané e o porquê a sua razão de ser fadista como algo mais de teor pessoal e intimista como se adivinhara, mas sim, o avistar a sua complexidade como figura incontornável do fado, o observar a sua atividade na recriação e o processo vocal para a complementação da sua arte. Ponto curioso é que a certo momento, durante a entrevista, o jornalista o questiona de se “aprende-se a sentir“. Mais tarde, Camané canta o tema O Bicho de Conta, respondendo indiretamente à pergunta exposta.

Nesses termos, Fado Camané é uma obra humilde ao mesmo tempo que tece pretensão limitada quanto aos seus esquemas de alcance. Mas a voz de Camané continua a arrepiar, a invocar deuses frágeis melodicamente acorrentados. Talvez seja ele um dos últimos da sua espécie, visto que depois de Amália Rodrigues são poucos aqueles que ousam em transgredir as fronteiras tradicionais do fado cantado. Como aclama o próprio a meio do documentário – “eu não quero ser Amália, eu quero ser o Camané, e eu canto como o Camané“.

Pontuação Geral
Hugo Gomes
fado-camane-por-hugo-gomesO melhor - Camané cantado O pior - Fado Camané já possui data de estreia no circuito comercial, para quando a estreia de Mudar de Vida, que pelos vistos serve de base para este mesmo documentário.