Quarta-feira, 24 Abril

«Birdman» por Fernando Vasquez

 

A relação entre Hollywood e Broadway foi sempre complicada, com a primeira despreocupadamente assumindo um papel leviano, em que a lei do mercado domina, enquanto que a segunda sempre insistiu em manter um perfil de legitimidade artística único no mundo. A realidade é bem diferente segundo o realizador Mexicano Alejandro G. Iñárritu, que com a estreia de Birdman aqui em Veneza é bem capaz de ter lançado a bomba cinematográfico do ano.

Iñárritu, que nos habituou a narrativas cruzadas que no final se revelam de laços bem atados, sempre num tom de realismo social, produz em Birdman o seu melhor e mais ambicioso trabalho até à data, que pouco ou nada tem a ver com filmes como Amor cão ou Babel.

Riggan (Michael Keaton) é um ator em final de carreira que sobrevive dos louros conquistados pela representação de um único papel, Birdman, um super-herói que deu origem a varias sequelas de sucesso. Apesar de toda a fama e fortuna, Riggan insistiu sempre ao longo de toda a sua carreira em sacudir o rotulo imposto pela personagem, sem nunca sequer chegar perto de o conseguir. Depois de varias tentativas falhadas no cinema, decide lançar a sua ultima cartada no teatro, investindo tudo o que possui numa peça na Broadway por ele interpretada e encenada. Mas, desconfiando sempre de tudo o que vem de Hollywood, o publico e critica de Nova Iorque ataca o ator mesmo antes da estreia da peça. Riggan, lado a lado da sua assistente e única filha, Sam (Emma Stone), congrega então algumas das maiores estrelas do momento para contracenarem consigo, incluindo Lesley (Naomi Watts) e principalmente Mike Shiner (Edward Norton), o ator da moda, venerado pelo seu passado no palco.

No entanto os vícios, defeitos e perigos de Hollywood são demasiado idênticos na Broadway, que tem tanto de intelectual como banal, pondo em causa o sucesso da iniciativa, apesar dos esforços desesperados por um pouco de reconhecimento artístico por parte de Riggan. Sempre perdido entre o real e o imaginário, tal como em frequente debate com a personagem imaginaria que o tornou celebre, o ator entra numa espiral de tensão, que não deixara ninguém imune.

No meio de tanta ação e bipolaridade, Birdman é extremamente eficaz no que toca a apresentar-nos uma visão caótica, mas não por isso menos correta e excitante, sobre a disfuncionalidade do mundo do especulo, ao mesmo tempo que solta balas em todas as outras direções. Dos encenadores aos realizadores, dos escritores aos críticos culturais, do público aos youtubers, dos super heróis aos geeks que os consomem, ninguém é vitima inocente para Iñárritu. Apesar da agressividade e excentricidade de todo o enredo é impossível não mencionar que é um privilegio delirante percorrer os corredores desta narrativa e cenário.

Há muito a dizer sobre Birdman, mas a menção principal tem de ir obrigatoriamente para Michael Keaton, cujo o regresso é de tal forma enfático, que até a normalmente comedida revista Variety ja intitulou de: “Comeback of the century”, ao mesmo tempo que insinua que a atribuição do Óscar a outro qualquer ator seria uma farsa. De facto, o casting do ator não podia ser mais perfeito. No início dos anos 90 Keaton chegou a ser o ator mais bem pago em Hollywood, após os sucessos comerciais de Batman e Beetlejuice. No entanto, a sua carreira rapidamente tomou uma curva descendente, repleta de flops e falhanços que o mantiveram escondido do grande publico durante mais de 15 anos. O seu desempenho em Birdman é absoluta e inequivocamente notável, desempenhando até certo ponto a sua própria vida, expondo-se assim com uma coragem raramente vista. Keaton que sempre se pautou por um estilo nervoso e irrequieto, desempenha a queda psicológica de Riggan com uma estranha naturalidade. O cariz quase sobrenatural da Riggan não amedrontou o ator norte-americano, que agarrou esta ultima oportunidade para provar que ao contrario da personagem que representa, ele não é apenas um “One hit wonder“. Tanto investimento pessoal resulta num cocktail de emoções inesquecível, que deixará muitos com fome por mais.

Os outros protagonistas não lhe ficam atrás. Edward Norton continua a acumular representações de luxo, desta feita mais atrevido, ao leme de uma personagem profundamente louca, que deambula por muitos estereótipos da profissão, sempre com uma potente dose de humor e sátira. Emma Stone, no papel da filha de Riggan em fase de recuperação de toxicodependência, é também igualmente assinalável, apesar de se notabilizar por ser a personagem mais comedida.

Se é impossível não reconhecer o talento raro dos intervenientes, o papel na gestão de tanta habilidade não pode deixar de ser atribuída a Iñárritu, que apesar da demência e extravagancia do guião, nunca se desorienta no objetivo final.

Birdman é também um ato revolucionário a nível técnico. A câmara de Emmanuel Lubezki (Gravidade; Filhos do homem) parece flutuar como se estivesse debaixo de agua, sem que se deslumbre um único corte ao longo de praticamente todo o filme, graças à edição imaculada e discreta de Douglas Crise (21 gramas). Adicionando-lhe uma banda sonora composta praticamente apenas por uma bateria de jazz, e uns créditos ímpares, este filme também sabe ser um autentico banquete visual.

Após a estreia de Map to the stars de David Cronenberg em Cannes, e outros títulos idênticos prestes a estrear, Birdman confirma agora o início de uma nova tendência em Hollywood. Uma disposição que promete um novo sentido autocrítico, uma nova capacidade de olhar para dentro de forma a reinventar-se, como alias sempre o fez ao longo dos muitos ciclos, negativos e positivos da historia do cinema. Duma perspetiva excessivamente positiva (que parece predominar pela critica aqui em Veneza) parece indicar que a era dos super-heróis da Marvel e as orgias de CGI tem os dias contados. Seja como for, teses serão escritas sobre Birdman um pouco por todo o mundo, e no pior dos casos fica para trás não mais um filme sobre um super-herói, mas sim simplesmente um super filme.


Fernando Vasquez

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