Sexta-feira, 19 Abril

«Whiplash» (Whiplash – Nos Limites) por Fernando Vasquez

Na “guerra” dos grandes festivais internacionais de cinema, Cannes continua sem rival ou inimigo capaz de lhe fazer frente, salvo uma pequena e raríssima exceção. De há uns tempos para cá que a programação do grande festival no sul de França abre uma exceção anual às suas próprias regras, de forma a poder incluir a grande sensação do evento que transforma a pequena localidade de Park City, no Utah, na capital mundial do cinema independente: Sundance.

A exceção desta edição de 2014 apareceu na Quinzena dos Realizadores, a mais badalada mostra secundária em Cannes, que resolveu jogar pelo seguro selecionando para a sua competição o filme que dominou por completo o prémio do publico em Sundance, Whiplash do norte-americano Damien Chazelle. Dificilmente poderia ter sido uma decisão mais acertada, a julgar pela ovação e êxtase da audiência no final da estreia do filme.

“Whiplash” retrata-nos a história de Andrew Nieman (Miles Teller), um jovem baterista apaixonado pelos grandes mestres do jazz e determinado a seguir-lhes as pisadas, evitando assim repetir os erros do seu pai, outrora um promissor escritor que acabou como mero professor de liceu. Para alcançar o seu grande objetivo, tornar-se numa lenda viva do jazz, inscreve-se no conservatório de Manhattan onde acaba selecionado para a Studio Band, uma orquestra liderada pelo notório professor Terrence Fletcher (J.K. Simmons), conhecido pela sua impulsividade e métodos poucos ortodoxos. Liderando a banda como se de um exército se tratasse, sob um reinado de terror e intimidação constante, Fletcher leva o jovem baterista aos limites do tolerável. No entanto, a obsessão de Nieman não lhe fica atrás, chegando ao ponto de propositadamente se livrar de todas as amarras pessoais que o vão distanciando da perfeição musical, isolando-o progressivamente dos seus pares.

Na sua génese, este é um filme que se debruça sobre a ambição desmesurada de muitos músicos, que apenas depois de enorme sacrifícios pessoais atingem patamares galáticos. Contudo, Chazelle, que se revela como um cineasta de uma sensibilidade e talento também extraordinariamente invulgar, recusa-se a permitir que Whiplash se transforme num julgamento moral, escapando às muitas armadilhas que o tema lhe prega, com truques narrativos implacáveis e surpreendentes, fruto de um guião imaculado a roçar na perfeição.

Repleto de momentos cómicos, de um humor deveras negro, os dotes narrativos de Chazelle, também argumentista, são notórios, levando a audiência a pensar que a história acabará por encarrilhar por caminhos mais seguros e convencionais, acabando sempre a surpreender com súbitas e astutas alterações de tom. Onde muitos outros escorregam, Chazella triunfa, simplesmente porque nos oferece uma realidade onde nada é a preto e branco, mostrando-nos no processo que muitos dos defeitos da condição humana podem ser virtudes em determinadas situações.

O desenvolvimento das personagens, todas elas multifacetadas, apesar de aparentemente serem regradas por um só intransigente objetivo, escondem uma instabilidade emocional natural em quem vive na constante luta pelo sucesso. As performances do jovem Miles Teller e do veterano JK Simmons são a chave do grande êxito do filme. Este ultimo merece particular realce, já que depois de várias prestações de luxo em papéis secundários, em filmes como Obrigado por fumar e Juno, finalmente aparece agora em grande destaque, numa atuação digna de várias nomeações. Simmons pode não fugir muito ao estilo que o tornou celebre, autoritário, cómico e intimidante, mas fá-lo com tanta confiança e naturalidade que transforma e amadurece uma personagem que facilmente poderia cair numa mera caricatura.

Tendo em conta a temática, a musica obviamente joga uma papel essencial no ritmo e passo do filme. Não é só a banda sonora de Jazz que vai reflectindo o caos e crescendo emocional das personagens, mas a própria bateria de Nieman, o grande catalisador da história, funciona por si só como uma personagem, em particular quando a edição de Tom Cross nos permite um olhar detalhado a todas as curvas e contornos do instrumento causador de tanto sacrificio e dor.

Sem nunca ser uma obra tipicamente de cinema independente norte-americano, nem muito menos um filme convencional de Hollywood, talvez a maior vitoria de Whiplash é o facto de ser tão acessível a diferentes interesses e audiências. Nem o retrato acinzentado de um jovem musico que não olha a meio para atingir os seus obetivos, nem os momentos de extremo desconforto gráfico, serão, seguramente, suficientes para impedir o sucesso que se prevê.

Se no ano passado a entrada sorrateira de Fruitvale Station, de Ryan Coogler, que veio direto de Sundance para vencer um prémio de destaque no Un Certain Regard, foi uma desilusão até certo ponto, com Whiplash, a Quinzena dos Realizadores teve uma cartada de génio, já que se trata de um filme inesquecível, que promete fazer correr muita tinta ao longo de 2014, na sua caminhada triunfal até à inevitável época de prémios, de onde dificilmente sairá sem uma longa série de estatuetas.


Fernando Vasquez
(Crítica originalmente escrita em maio de 2014)

Notícias