Quinta-feira, 28 Março

«Big Bad Wolves» por Hugo Gomes

Tortura e sadismo são duas características que facilmente associamos aos antagonistas do cinema, mas nunca aos seus heróis, nem sequer às personagens que eventualmente torcemos para que saiam triunfantes do enredo. Mas em 1972 surgiu um filme de baixo-orçamento que colocou o espectador numa situação inversa. Trata-se de A Última Casa à Esquerda, de Wes Craven, a sarcástica história de um grupo de psicopatas que torturam duas adolescentes, sendo que mais tarde pedem abrigo aos pais de uma delas. Este coincidência terrível gera variados e sobretudos sádicos planos de vingança, remetendo o espectador mais conservador num dilema pertinente: será possível apelar à violência em casos de suposta imposição de justiça? Um exercício narrativo que para além de ter lançado a carreira de um dos mais influentes realizadores do género nos anos 80 e 90, originou novas disposições de violência como também a transfiguração da própria imagem do herói, cada vez mais ambígua e negra de forma transgressora.

Nos dias de hoje essa dita manipulação não possui o mesmo impacto de outrora, tornando-se algo apelativamente comum na criação de novas personagens. Assim sendo, assistimos a uma crescente onda de protagonistas a usufruírem de tal faceta, como por exemplo um Liam Neeson a flagelar bandidos para poder extorquir informação quanto ao paradeiro da sua desaparecida filha em Taken de Pierrel Morel ou até mesmo um Hugh Jackman a comportar-se como o pior dos psicopatas em Raptadas de Denis Villeneuve. Sem falar que no meio disto tudo existe uma popular série de televisão em que o suposto herói é um procurado serial-killer (Dexter). Sim, o cinema atual evoluiu, adaptando-se a uma sociedade cada vez mais tolerante em relação a fragilidades. Com isto, é quase uma obrigação abordar os heróis como meros seres humanos, onde as suas facetas imaculadas e negras estão lado-a-lado, apenas separadas por um linha ténue, o que dá uma maior ambiguidade de caráter.

A ambiguidade é coisa que não falta a este Big Bad Wolves, dos israelitas Aharon Keshales e Navot Papushado, considerado pelo cineasta Quentin Tarantino como a melhor obra de 2013. Este é um filme que bebe da mesma água que o referido A Última Casa à Esquerda, uma distorcida “troca de papéis” que coloca o espectador num cenário desconfortáveç, desafiando-o a glorificar os atos de sadismo propostos. É um dilema moral que temos de acarretar. Porém, o filme consegue fazê-lo sem o maior dos esforços, em consequência de um humor ligeiro que se encontra presente até mesmo nos momentos que aplicavam um intenso impacto emocional. Ou seja, face a uma temática engenhosa e pertinente, Big Bad Wolves mostra-se algo despreocupado, não interessando à obra “chocar” o espectador mas sim refletir através de uma metáfora ao conflito duradouro entre israelitas e palestinos, mais do que propriamente em pedófilos e progenitores justiceiros. É que dentro desse assunto encaramos belas sequências como também diálogos deliciosos que propõem um choque cultural estabelecendo as suas diferenças mas acima as afinidades. Tudo à base de um sarcasmo afiado e por vezes mais violento que as próprias torturas descritas.

Aharon Keshales e Navot Papushado construíram assim um filme corajoso, esteticamente sedutor e acima de tudo divertido o quanto baste. Reconhece-se com clareza as razões que convenceram Tarantino, esta é uma produção que fala a sua língua.

O Melhor – Um filme sarcástico que afronta diversas questões sociais, como também culturais.
O Pior – Apesar de tudo, a ideia já fora vista antes.


Hugo Gomes

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