Quinta-feira, 28 Março

Até à Eternidade: o beijo que marcou uma época

Um beijo intenso entre Burt Lancaster e Deborah Kerr sobre as areias havaianas marcou com ousadia uma época e, claro, com a reposição do clássico de Fred Zinnemann nos cinemas portugueses, tal sequência é servida como um “tapete de boas-vindas“. Contudo, mesmo não tendo envelhecido como gostaríamos, a obra vencedora de oitos Óscares, incluindo o de Melhor Filme, foi um dos exemplos maduros do cinema hollywoodesco – num tempo em que a ingenuidade e a inocência, muito derivado dos sistemas de censura e de preservação dos bons valores morais da época, eram como marcas inegáveis duma idade de ouro de Hollywood.

Baseado num romance homónimo de James Jones, From Here to Eternity (“Até à Eternidade“, em Portugal) remete-nos à base militar Oahu, no Havai, em vésperas do ataque das forças japonesas a Pearl Harbor. Desde então seguimos as aventuras e desventuras de alguns dos militares dessa unidade, um mundo de homens que desaba com a entrada do sexo feminino nas suas rotinas diárias. Entre as diversas histórias contadas, uma das mais marcantes pertence a do sargento Milton Warden, interpretado por um galã Burt Lancaster. Ditado por um comportamento e conduta militar exemplar este herói de Guerra condecorado começa por aventurar-se num caso amoroso com a esposa do seu Comandante de Companhia, Karen Holmes (Deborah Kerr).

O que de início seria apenas como mais uma relação à base de luxuria transforma-se numa paixão com sérios riscos para ambos. No mesmo quartel de Warden ainda deparamos com o recém-colocado Robert E. Lee Prewitt (Montgomery Clift), um soldado de carreira imaculada, tendo efetuado a especialidade de corneteiro como antigo pugilista. Esta última é uma das causas da sua transferência de unidade, já que o Comandante de Companhia, o capitão Dana Holmes (Philip Ober), organiza um campeonato distrital dessa mesma modalidade.

Segundo consta, Holmes fez os possíveis e os impossíveis para que o militar integrasse a companhia que comanda tendo em conta o seu potencial nesse desporto de combate – o que garantia prováveis chances de conquista do título. Porém, face a uma tragédia pessoal na sua carreira como pugilista, Prewitt recusa a oferta do seu capitão, o que gera um “tratamento especial” na sua estadia na base de Oahu. Constantemente punido e humilhado, Prewitt encontra refúgio nos braços de uma prostituta de luxo duma casa de alterne, Lorene (Donna Reed), e o apoio do seu camarada Angelo Maggio (Frank Sinatra).

As sombras de Fred Zinnemann

From Here to Eternity foi um filme crucial para a carreira de muitos dos envolvidos, a começar pelo facto de ter sido o maior êxito comercial e de critica do realizador Fred Zinnemann. Consagrado com o Óscar de Melhor Realizador graças a este retrato pré-Pearl Harbor, o cineasta saiu por completo do estatuto de autor mediano e de produtos académicos, vulgarmente apelidados de “pastelões”.

Tendo como raízes vienenses e judaicas, o realizador sempre fora comparado com Billy Wilder e outros cineastas europeus que, em plenos anos 30 e sob a ameaça da Guerra, decidiram seguir para os EUA sob a promessa de viver um “sonho americano” no ramo do cinema. Essa comparação, contudo, serviu de apenas para alimentar expetativas que ele nunca cumpriu durante o seu trajeto artístico.

O seu interesse no best seller de James Jones fora criticado na época, eventualmente pelos receios que o passado sombrio do autor sobressaísse da verdadeira essência de From Here to Eternity. E esta era uma guerra contra os modelos tradicionais bélicos onde o retrato dos bastidores presenteava um autêntico espírito norte-americano com as suas falhas e valores intactos, tudo representado sem maniqueísmo e envolto como um “atentado” à moralidade classicista e ingénua.

Contudo, foi graças a essas mesmas sombras que rodeavam Zinnemann que o fez constantemente afastar de qualquer tentativa de panfletismo, concentrando-se somente naquela comunidade militar e pouco mais. Porém o grande impulso do seu passado deu-se apenas à determinada e simbiótica (devo dizer) altura, o fatídico dia dos ditos e esperados ataques das forças nipónicas começam finalmente a decorrer no ecrã.

O realizador teve aqui a sua chance de invocar os horrores da Guerra que o perseguiram e o fizeram exilar. Ao invés disso, Zinnemann explora o medo de um inimigo invisível e inatingível através dos olhos dos militares daquela base, meros guerreiros agora indefesos, rezando pelas suas vidas e lutando com poucos meios perante os bombardeamentos inesperados. Terão sidos este sentimento de vulnerabilidade que o realizador sentiu no momento em que abandonou a sua terra natal?

Frank Sinatra: holofotes e suicídio

Se a carreira de Fred Zinnemann encontrou em From Here to Eternity a crucial mudança que precisava, Frank Sinatra, por sua vez, relançou-se graças ao seu filme. Após ter vivido anos na ribalta, o cantor italo-americano enfrentava agora uma queda iminente. Perdeu a voz em 1950, sendo que o seu espetáculo televisivo, The Frank Sinatra Show, já tinha visto melhores dias, sendo negado pelas editoras e superado por estrelas novas e ascendentes. Sinatra desespera, tenta o suicídio no seu apartamento em Nova Iorque, mas falha tal tentativa. Sucedendo-lhe então a depressão.

O cantor precisava de uma oportunidade para regressar de novo ao estrelato e viu-a no soldado italo-americano Maggio. Desde então Sinatra começou a perseguir literalmente o papel, mesmo que o estúdio, a Columbia Pictures, tivesse inicialmente negado a participação do artista. Mas após uma interminável persistência deste e das influências da sua mulher, a atriz e estrela Ava Gardner, ele conseguiu por fim o papel. Contudo foi o menos pago do elenco, tendo recebido apenas oito mil dólares.

Em compensação o filme tornou-se num êxito de bilheteira e a personagem de Sinatra foi bem recebida pelo público. Por fim, como um dos momentos mais altos e marcantes da sua carreira, foi distinguido com o Óscar de Melhor Actor Secundário – motivando o seu regresso aos holofotes. Frank Sinatra havia-se tornado num dos mais influentes artistas norte-americanos do século XX e em From Here to Eternity tal prestigio continuou preservado.

As guerras de James Jones

Escrito em 1952 e adaptado ao grande ecrã no ano seguinte, From Here to Eternity concentrou-se como um dos pontos cruciais da obra do escritor norte-americano, James Jones. Baseado nas suas memórias como militar, a sua história que reúne romance, guerra e um conjunto variados de preocupações a nível social descritos e representados nos seus personagens, valeu-lhe a National Book Award em 1952. Tendo em conta que foi a sua primeira obra literária não haveria melhor arranque de carreira.

A guerra do Pacifico foi entretanto um tema badalado e predileto para James Jones que abordou tais factos e experiência durante a sua obra. Entre os seus livros conta-se com o célebre The Thin Red Line, publicado em 1962, que originou dois filmes distintos, a fita de Andrew Marton em 1964 e o aclamado retrato bélico de Terrence Malick no homónimo de 1998.

As mulheres e a censura

Apesar de ser um símbolo de ousadia cinematográfica da sua altura, foi também um filme vitima da censura e da selecção moral norte-americana.  A obra esboça temas delicados como a prostituição, adultério e corrupção. O autor James Jones abordou-os de modo a que pudesse integrar na narrativa sem que soasse a panfleto, representando-as através das personagens e das relações entre elas. Entretanto, o argumento adaptado de Daniel Taradash tentou de certa maneira minimizar as polémicas no qual o livro estava envolto e na agressividade da sua premissa.

Devido a tal intervenção na obra de Fred Zinnemann, o espectador sente uma certa falta de naturalidade nas personagens femininas, Deborah Kerr e Donna Reed que, indiscutivelmente, emanam os tópicos mais controversos da intriga. A primeira é a esposa adúltera de um oficial e a segunda uma prostituta de uma casa de alterne. A fita não esconde tais princípios em ambas, contudo existe uma tendência de fabulizar os atos. Hollywood nunca fora favorável na descrição das personagens femininas, reduzindo-as aos estereótipos e negando qualquer simbologia sexual que possam provir.

Antes da implementação da igualdade entre sexos e os idealismos feministas, o cinema norte-americano de prestígio era fraco na conceção de tais personagens e na figura que representam no grande ecrã, servidos normalmente como par amorosos, incuráveis apaixonadas e submissas perante o herói masculino. “From Here to Eternity” de certa forma tentou contornar tais problemas de desprezo sexual e o fez de maneira leve, sendo que essas “pequenas doses” foram capazes de gerar polémica e, acima de tudo, uma ousadia implementar que chegou a vingar.

A entrada da obra de Fred Zinneman nos prémios de Academia serviu de todo como anúncio de uma nova Era do cinema de Hollywood. Uma era em que a ingenuidade e a inocência de carácter opressivo estavam a ser despidas perante os “ventos de mudança” que se avizinhavam. Em evidência a isso é que com o passar dos anos o eterno beijo entre Burt Lancaster e Deborah Kerr continua a ser debatido e marcado como ponto de viragem de Hollywood.

 

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