Quinta-feira, 28 Março

Cannes: Mulheres entre “boa” e “má” propaganda

O Festival de Cannes poderá ter encontrado o seu mais forte candidato à Palma de Ouro, Les Filles du Soleil, uma obra que condiz com os tempos atuais, com o ativismo presente e uma oportunista absorção da nossa conscientização ocidental.

Inspirado em fatos verídicos, mas distorcidos de forma a proteger nomes e locais, o filme acompanha um bando de mulheres guerrilheiras, uma milícia pronta a libertar o Curdistão do islamismo radical. São soldados(as) que quebram as suas limitações sociais para direcionar a sua amargura, raiva e desespero em prol de uma luta. Tema forte que acena a bandeira do feminismo cada vez mais pontuado na nossa sociedade e nas questões da condição da mulher no Médio Oriente.

Porém, é uma “armadilha”. Les Filles du Soleil não esconde aquilo que quer assumidamente ser, propaganda em boa graça. Todas as imagens falam com um grau de ativismo quase pedagógico, os diálogos fortalecem essa mesma veia, nenhuma palavra é desperdiçada em vão, e as personagens são movidas por um propósito apenas.

Distintamente, é um filme feito por uma mulher, Eva Husson, que trabalha com as atrizes Golshifteh Farahani (a mais forte candidata a o Prémio de Atriz) e Emmanuelle Bercot numa intriga de retaliação mutilada por flashbacks de suporte e uma montagem preguiçosa fora da ação de tiroteio. A narrativa torna-se com isso arrítmica e a abordagem por estas mulheres de força, desencorajadas por um holofote faccioso para com a personagem de Farahani, não dão espaço para outros dramas.

Mas o pior é que todo este retrato explicita um olhar de fora, uma visão ocidental que se instala na figura de Bercot, a nossa guia, que tenta rivalizar as suas tragédias com o rótulo de “heroína”, mas que no fim das contas acaba por ser mais um “white world problems”.  

Se vamos cair na ideia de que todas as imagens são propagandistas, ou pelo menos espelham uma ideia qualquer que seja, então deveremos começar a considerar “boas” e “más” propagandas. Le Filles du Soleil íntegra o último grupo, porque o seu movimento total (o conjunto de imagens, atos e gestos captados no grande ecrã) funciona em prol de uma mensagem estática e clarificada de conscientização imediata.

No caso do novo filme de Jafar Panahi, 3 Faces, o jogo de enganos quanto ao que é real e o que é falso traça um trilho por vezes encruzilhado em direção às suas ideias. 3 Faces leva-nos à boleia de Jafar Panahi, ele próprio (who else?), em conjunto com Behnaz Jafari (a bastante popular atriz iraniana, entre os seus trabalhos conta-se O Quadro Negro, de Samira Makhmalbaf), por entre as montanhas do Azerbaijão com o intuito de investigar um suposto suicídio. Numa aldeia remota, o tradicionalismo vive com eficaz força, salientando o preconceito e as crenças populares que examinarão de maneira subtil a condição da mulher numa sociedade ainda patriarcal. Poderemos argumentar que Panahi é um homem que leva avante a sua visão puramente masculina, porém, as suas imagens não acarretam mensagens singulares e sim uma ambiguidade que debate na veracidade dessas mesmas ideias e imagens.

Existe uma certa amargura neste farsante dispositivo que vitimiza a realidade que nos é imposta. Nesse aspeto, Panahi caminha a passos para o seu conterrâneo Abbas Kiarostami, de Close-Up.

Continuando nesse traço feminino, a lusodescendente Vanessa Filho cita uma coleção de infâncias “roubadas” cinematográficas, passando por Little Fugitive, de Morri Engel e Ray Ashley, até chegar a 400 Coups, de Truffaut, sem esquecer o efeito Lolita, para subliminarmente desafiar-nos com uma pertinência feminista. Será que todas mulheres dão “boas” mães? Obviamente que é pertinente comparar a emancipação feminina com a criança-mulher que Marion Cotillard encarna neste Gueule d’ange, apresentado na Un Certain Regard. Uma mãe que coloca a folia acima da sua pequena filha,  deixando-a sua mercê.

O filme tende em transformar uma maturidade desenvolvida à força, com a menina, Aksoy-Etaix, a sobreviver com a ausência da sua progenitora, projetando nesse quotidiano pré-fabricado uma realidade que não existe. Trata-se de uma obra curiosa que não foi bem aceite pela imprensa. Os assobios ouviram-se no final da sessão como resposta aos aplausos, que após a entrada dos créditos finais, fizeram-se sentir.

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