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Francisco Ramalho Jr.: «Não sei se realizadores estrangeiros sobreviveriam na profissão se vivessem no Brasil»

Neste momento em que o cinema brasileiro reforça seu prestígio internacional via Berlinale, com onze filmes em diferentes mostras do festival alemão, um mestre dos nossos ecrãs regressa ao circuito, fazendo o público gargalhadear: o paulista Francisco Ramalho Jr.

Filmes como À Flor Da Pele (1977) e Besame Mucho (1987) são radiografias geracionais que tomaram o cinema nacional de assalto, cada um à sua época, por um teor existencialista de uma poesia que raras vezes os retratos afetivos do audiovisual brasileiro alcançou: mérito do olhar que Ramalho tem sobre as vicissitudes do querer. Famoso como produtor, responsável por marcos como O Beijo da Mulher Aranha (1985), do seu habitual parceiro, Hector Babenco (1946-2016), Ramalho alcançou prestígio como cineasta ao filmar O Cortiço, de Aluísio Azevedo, aplicando suas inquietações existenciais aos códigos naturalistas daquele marco da literatura.

Realizador bissexto, com poucas (mas preciosas) longas-metragens numa carreira de cinco décadas, regressa agora aos cinemas com uma comédia sobre um ator (Thiago Fragoso) que busca uma reinvenção na carreira, com a ajuda do irmão. Fiuk, Christine Fernandes e Luiz Henrique Nogueira são os demais destaques do elenco desta produção, lançada na última quinta.

O caminho para entender a força narrativa desta obra passa por patrimónios valiosos do cinema humorístico.  Autor de piadas para os Irmãos Marx e Lucille Ball, animador e realizador de filmes que refinaram o humor de Jerry Lewis nos cinemas, Frank Tashlin (1913-1972) deu à comédia hollywoodiana dos anos 1950 uma excelência singular (mas ainda pouco reconhecida) pra lidar com as inaptidões inerentes à timidez. Tipos tímidos brotam dos seus clássicos do riso como Pintores e Raparigas (Artists and Models, 1955), num esforço de dar ao filão cómico uma dimensão de crónica de costumes. Poucos realizadores- nos EUA, só Peyton Reed, de Yes Man (2008) – foram pelas vias de Tashlin, mas, no Brasil, o vaudeville O Galã tem aroma tashliniano, graças à cultura cinéfila de Ramalho Jr.

À Flor da Pele (1977)

Um estudioso dos engasgos morais que levam o amor ao boicote, como se viu na sua obra-prima, À Flor da Pele (1977), onde se debruça sobre as veredas da gargalhada, com base na peça Meio Irmão, de Emílio Boechat. Faz com ela algo similar ao que Tashlin criou no doce A Loira Explosiva (Will Success Spoil Rock Hunter?, 1957): uma investigação sobre os afetos no universo audiovisual. Thiago Fragoso é o seu Dean Martin: ele vive Júlio, um ator à cata de sucesso que busca um papel numa novela em meio à reinvenção das suas emoções. Já Luiz Henrique Nogueira (impecável em cena) é o lado Lewis deste quiproquó: ele interpreta Beto, o autor do folhetim em que Júlio, o seu mano mais novo, deseja atuar. Entre peripécias por amor, vaidade e rivalidade com um astro jovem (Fiuk), Júlio e Beto revisam desavenças e afinidades numa montagem (de Manga Campion) que nunca deixa o ritmo escorregar e disfarça diálogos menos inspirados. É comédia à moda antiga… à moda Tashlin.

A sua versão de O Cortiço, de 1978, é um marco do naturalismo nos nossos ecrãs e em paralelo a ele, fez uma leva de grandes filmes enquanto produtor. Em que lugar a comédia entra na sua história? 

Fiz duas comédias anteriores. Uma era um episódio de Sabendo Usar não vai Faltar. Era o episódio Joãozinho, que escrevi inspirado num conto de Truman Capote sobre um vendedor de sonhos. E teve Besame Mucho, baseado numa peça teatral de Mario Prata, que modifiquei muito ao falar sobre a minha geração num determinado período de tempo. Agora, em O Galã, abordo pela comédia a dificuldade de profissão do ator, da solidão do escritor. Falo também do quão difícil é a fraternidade, mas em tom bem humorado, sem dramas, ainda que toda comédia tenha dramas no seu interior. Gosto de experimentar temas e géneros. Fiz até um nordestern, Canta Maria.   

De que maneira a história do seu filme nos abre brecha para discutir o culto à celebridade e à fama nos nossos dias? 

Se as classes ilustradas desejarem trocar ideias a partir do que exponho em O Galã, há todos os elementos para um amplo debate. Tem a questão da personalidade do ator, que é sempre um camaleão necessitado de afirmação, mas, em grande parte, sofrido e amargurado até ter um lugar ao sol. Tem a solidão neurótica dos escritores e a enorme disputa para existir num meio profundamente competitivo. E para um ator, a sua criação também é solitária, aparentemente irracional, pois nasce do seu interior, do seu instinto, da sua perceção do outro que vai interpretar. 

O Galã (2019) l Foto.: Renata Falzoni

Qual é o legado realista que o seu cinema traz dos anos 70? O quanto de realismo, social ou não, cabe numa comédia dos novos dias? 

Fiz uma dezena de filmes como realizador e guionista, outros tanto como produtor, aprendi e continuo  a aprender a viver. Busco  compreender os outros através da minha  profissão. Não me julgo, vivo, realizo.

Como você avalia o ofício de produzir filmes no Brasil de hoje?

Difícil e estupidamente burocrático  além de estatizante. Não sei se realizadores estrangeiros sobreviveriam na profissão se vivessem no Brasil.