Quinta-feira, 28 Março

Hirokazu Koreeda: «Como cineasta levo comigo uma variedade de DNA»

Foi com uma família de pequenos ladrões que o cineasta japonês Hirokazu Koreeda conquistou a Palma de Ouro no último Festival de Cannes. Durante a sua passagem na Riviera Francesa, a sua mais recente obra foi celebrada por todos que o viram, inclusivé Cate Blanchett, a presidente de júri que não conseguiu disfarçar a sua comoção.

Shoplifters é um filme que culmina os mais diversos e reconhecíveis elementos da carreira de um dos mais citados dos realizadores nipónicos modernos. É o regresso ao conto das “famílias fabricadas”, aos afetos quase inexistentes de uma sociedade aprisionada à solidão e ao individualismo e as pertinentes questões do sistema prisional e judicial.

O C7nema teve o prazer de falar com o realizador sobre o seu laureado trabalho e dos seus processos de criatividade.  

 

Quer falar-nos como surgiu esta ideia e se ela tem algo relacionado com a sua experiência? Possivelmente com a sua juventude?

A minha infância foi diferente daquilo de Shoplifters, em certa maneira. Vivi num apartamento pequeno com a minha família, se bem que baseei a história através da minha perspetiva e observação aos mesmos. Porém, aviso … não eramos “shoplifters” (ladrões de supermercado) [risos].

Com o tempo, a mesma história foi contagiada com diversos eventos que via nos boletins noticiosos. Uma coisa é certa. O Japão tornou-se gradualmente num país de classes maioritariamente médias e altas, mas ainda havia uma camada marginalizada que subsistia do part-time e dos subsídios sociais e outras ajudas do Estado. E por causa disso, o que assistimos no filme – fraudes nas pensões – acontece frequentemente. A família não anuncia a morte dos seus anciões de forma a continuar a receber a pensão, crucial para a sobrevivência. O filme não foi baseado em nenhuma história verídica, mas possivelmente em muitas.

Em Shoplifters deparamos com uma marca sua, o retrato de um coletivo ao invés de se focar numa personagem só.

Penso que o fiz em Air Doll. Curioso é que existem muitos jornalistas que lançam essa questão. Sinceramente não estou muito interessado em elaborar uma personagem central, as histórias que abordo são propicias ao coletivo.

A família é uma boa maneira de contar a história de uma pessoa, porque é através do conceito de família que encontramos tudo o que precisamos para entender e desenvolver a personagem, sobretudo sob uma perspetiva emocional. Por exemplo, gosto muito de trabalhar com personagens femininas, as mulheres  criam melhor esses laços afetivos, dentro e fora do circuito familiar. É nesse mesmos que desenvolvo as minhas personagens, num ensaio de união e confraternidade.

Como muito da sua obra, em Shoplifters tenta sobretudo entender esta família em vez de expressar o seu ponto de vista.

Em termos sociológicos, comecei a minha carreira de cineasta como realizador de documentários para televisão, sendo que, com isso, priorizei uma atitude observacional. Para mim o importante não é a expressão, por mais que diversas vezes queira o fazer, mas sim a descoberta. Tenho em conta que as audiências possuem cada uma delas um ponto de vista e uma perspetiva. Em Shoplifters, a importância era o de observar esta família e aprender através dos seus atos, e faço-o prestando tudo aquilo que descobri no ramo do “storytelling”.

Conheceu alguma família assim nesse processo observacional?

Não conheci nenhuma família de “shoplifters” se é isso que me pergunta, mas fui a diversas casas de acolhimento para crianças e fiz uma intensa pesquisa sobre o sistema, como funciona, como atua e as suas falhas.

 

Repescando outra marca autoral, tendo em conta o seu Like Father, Like Son (Tal Pai, Tal Filho) e este Shoplifters, tem abordado sobretudo o conceito de família. Eu, enquanto ocidental, tenho a ideia que no Japão há uma prioridade nos laços sanguíneos, mas Koreeda literalmente diz que a estrutura de toda a família está no afeto?

As famílias destes dois filmes são exceções e a imagem que se tem sobre o Japão é quase exata. Nós valorizamos as famílias unidas pelo sangue, e por norma olhamos para as “famílias fabricadas” com uma certa frieza. Porém, estas personagens – que se juntaram – foram abandonadas pela sociedade, tendo em comum a sua marginalidade, apoiando-se e encontrando conforto e afeto em cada um desses elementos. O que pretendo é que as audiências simpatizem com eles, mas acima de tudo, percebam das causas que os levaram a esta união. Demonstro isso através dos sentimentos que nascem nesse mesmo conceito de família.

 

No seu filme também aborda outra questão que tem sido ligada à condição da sociedade japonesa – a solidão.

Temos uma expressão, que tem sido utilizada cada vez mais nos últimos anos, que significa mais ou menos isto: “fazer as coisas por nós próprios”. Por exemplo, se nós queremos ir a um restaurante, vamos, mesmo que sozinhos.

Julgo que a grande dificuldade da sociedade japonesa é o de lidar com a diversidade. Existe muita pressão para os casais, o casamento é quase visto como uma obrigação do que qualquer outra coisa, e como tal os japoneses mais jovens tem apostado sobretudo no individualismo ou simplesmente na vida como casal, ao invés das numerosas famílias.

Eu não quero impor essa ideia de conceito familiar, mas nas últimas duas décadas o sistema económico entrou em recessão, o que tem providenciado essas tendências. Onde era comum encontrarmos casas habitadas por seis gerações numa família, hoje deparamos com casais ou individualistas.

A única coisa que tenta contrariar essa mesma tendência é o estatuto, mas isso tem impulsionado a ascensão do nacionalismo, o que tem pressionado diversas famílias.

E quais serão as causas desse nacionalismo?

Quando o sistema económico está em queda, culpamos sobretudo os imigrantes. O nacionalismo é um raiva direcionada.

Nos seus filmes existe uma certa sensação de improvisação por parte dos atores. Como os dirige? Quais os seus métodos de trabalho neste ramo?

Não existe muita improvisação nos meus filmes, ao contrário do que as pessoas pensam. A questão é que nunca termino os meus argumentos antes de começar as rodagens. Aliás, só começo a filmar quando começo a escrever o argumento. Isso dá-me manobra criativa e perceção para entender que rumo a seguir com a história que estou a desenvolver. E em cada dia de filmagens, reforço ou reformulo o guião.

Constantemente procuro algo nos desempenhos dos meus atores, uma matéria orgânica que os envolve juntamente com as personagens e o meu guião. O meu trabalho é sempre mais difícil porque o argumento está em gradual transformação.

Existe uma cena em Shoplifters, onde várias personagens são interrogadas pela policia em que não preparei os meus atores com nenhum fala definida. Eles desconheciam as perguntas que a policia iria fazer. Este é o tipo de improvisação que faço, à procura do momento e do efeito genuíno.

Mas mesmo assim, filma cronologicamente?

O quanto possível.

Nota-se que tem um certo carinho por estas personagens, por esta família.

Eu amo esta família, mas o facto de declarar esse amor não quer automaticamente dizer que concordo com eles em tudo.

Gostaria que falasse da fotografia deste filme. Os tons coloridos mesmo num quotidiano acinzentado.

Julgo que Ryûto Kondô é um dos melhores diretores de fotografia do Japão e foi um prazer trabalhar com ele. Quanto à questão das cores, mesmo em tentar apostar num filme de teor realista, sinto que na observação do quotidiano, procuramos uma certa poesia e o embelezamento trazido por esta pode muito ser representado pelos tons. Debati muito com Kondô e acordamos naquilo que procurávamos. Hoje olho para o filme e apercebo-me do excecional trabalho da sua parte.  

É habitual fazer esta comparação, mas queria diretamente questionar-lhe. Acha que é o herdeiro legitimo do cinema de Yasujiro Ozu?

Muitos dizem que sou o seu neto, mas posso certificar que não tenho qualquer relacionamento com ele. Ozu é um grande mestre, mas estou sempre a afirmar em entrevistas que conscientemente não o refiro nem o tento imitar nos meus filmes. Porém, essa comparação é um enorme elogio, eu sei e acabo por não resistir.

Com este filme quis retratar um casal, julgo que por isso sou mais Mikio Naruse que Ozu, e pelo meio desse retrato tentei abordar toda uma sociedade envolta como o Ladybird Ladybird de Ken Loach, que foi um dos filmes que me inspiraram, assim como o Boy, de Nagisa Oshima. Nesse filme damos de caras com uma família disfuncional que atravessa o Japão e que voluntariamente submete-se a atropelamentos para extorquir dinheiro. Vi esse filme no processo de conceção de Shoplifters.

Como costumo dizer, como cineasta levo comigo uma variedade de DNA.

Como vê a industria de cinema no Japão atualmente?

Está constantemente a piorar. Algo que tenho percebido é que existem cada vez menos participantes japoneses em eventos como Cannes.

Há cinquenta anos atrás existiam mais cineastas independentes e distribuidores que gostariam de trabalhar com eles. Atualmente, os grandes estúdios têm uma visão muito limitada e apostam quase exclusivamente no mercado interno. Olhando para o lado independente, encontramos uma vaga talentosa, mas também ela a decrescer devido a isso mesmo, o pouco interesse no mercado japonês. Julgo que o Japão está a tornar-se cada vez mais fechado e isso é algo que devemos impedir e atuar. 

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