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Stephane Brizé: “’Em Guerra’ testemunha a indecência do nosso mundo”

Nascido em 1966, o cinema só começa a fazer sentido para Stephane Brizé aos 20 anos. “Cresci sem cinema, sem livros, sem teatro. Até aos 20 anos foi assim. Antes dessa idade nunca fui ao cinema ver um filme. Via as comédias que davam na televisão. E aos 20 anos, o primeiro filme que vi foi o 4 Aventuras de Reinette e Mirabelle (1987) e aí houve qualquer coisa que me “acordou”… que mudou a minha vida. Os outros filmes, via como mero espectador, mas neste houve algo que me levou até dentro dele“, disse o cineasta em entrevista ao c7nema por ocasião da sua visita a Portugal na Festa do Cinema Francês.

Estreado recentemente entre nós, Em Guerra volta a reunir o cineasta com Vincent Lindon, o ator com quem trabalhou em A Lei do Mercado (2015), filme que também foca a luta dos homens e mulheres contra um sistema que “os impede de ganhar“. Aqui ficam as suas respostas sobre temas como o neoliberalismo, a sua interação com os atores, e a origem da sua ideia.

Depois de A Lei do Mercado  chega Em Guerra. Está “Em Guerra” com o sistema neoliberal?

Creio que é esse sistema que está em guerra com os trabalhadores. Eu sou apenas uma testemunha, em todo o caso impotente, que pode fabricar imagens que podem originar uma reflexão coletiva. Hoje em dia, aquilo que acho que faz sentido é poder mostrar o sofrimento dos homens e das mulheres e legitimar a sua cólera. Acho que é muito importante mostrar que estas pessoas têm razão em estar zangadas. Os políticos em larga escala querem nos fazer crer que estas gentes são más, bandidos, etc. Mas não é verdade. Eles calaram-se durante anos apesar dos baixos salários, dez, vinte, trinta anos. Há depois momento do: “Exploramos-vos há muito tempo mas já não precisamos de vocês pois podemos ir para um outro país“. Como Portugal, por exemplo. É interessante que esta é a primeira vez que mostro o filme num dos países onde as empresas francesas têm se deslocalizado (depois de saírem de França), não só indústrias mas também serviços, como os bancos. Há imensa exteriorização do trabalho dos bancos franceses, por exemplo. Por isso, os assalariados daqui podem estar contentes por agora, mas no futuro haverá outro país [mais barato] para onde as empresas voltam a deslocalizar-se. Ucrânia, China…etc.

Essas situações são assustadoras e uma fábrica para a dramaturgia. É como os filmes de guerra.

Sim, o Vincent Lindon no filme é um soldado…

Exatamente, o Lindon é um soldado. Um resistente. Por isso, no filme Em Guerra, não são os trabalhadores que estão em guerra, mas o sistema. E não acha que o destino final da personagem transforma-o num mártir, num sacrifício “de guerra”?

Ele não se sacrifica pelos colegas. Fá-lo por desespero, e se há sacrifício é pelo seu filho. Fomos nós, na coerência da personagem, no trabalho com o coescritor do guião, que colocamos esta ideia. O filho vem ao mundo para quê? A este mundo? No fundo, ele faz um gesto contra isso.

Aquilo que gosto bastante quando vejo o meu próprio filme é mostrar que vivemos num mundo que faz estes homens fortes ajoelharem-se. Isso é muito triste…

Uma das inspirações para o seu filme foi o caso dos “descamisados” da Air France. Porque optou por mostrar antes a história de uma fábrica?

Sim, a primeira imagem que me marcou e que me provocou o desejo de fazer este filme foi a dos “descamisados” da Air France. Uma imagem que passou pelos jornais de todo o mundo. E após esse momento de empatia com aqueles dois homens descamisados, pensei: o que aconteceu antes? Faltam as imagens do antes.

E eu não sou um ideólogo. Nunca tive um sindicato, nunca estive metido num partido político.


Imagens de executivos da Air France após serem confrontados e atacados por manifestantes 

Podemos dizer que o seu cinema é político mas não militante?

De todo. Existe sim um lado humanista. Não existe uma ideologia.

Mas voltando atrás, faltavam imagens do antes eles ficarem descamisados. Os media não me mostraram isso. Não acredito, com ideologias ou não, que aqueles homens e aquelas mulheres naquela manhã acordaram a pensar que iam arrancar a roupa a executivos da empresa. Até porque acho que se iam acordar com a ideia de arrancar a camisa, já o tinham feito há muito tempo. Por isso, o que é que se passou antes de fazerem aquilo?

Eu não desejava contar a história da Air France, apesar de não ter nada contra isso, mas antes de falar de um aglomerado de coisas que se passam na indústria. Na indústria, nós andamos a fechar empresas que ganham dinheiro. Eu quero contar a história de uma empresa que fecha porque ganha dinheiro. As pessoas corrigia-me: “não pode ser, contas a história de uma empresa que não ganha dinheiro e fecha”. “Não, vou contar a história de uma empresa que fecha porque ganha dinheiro. É algo de loucos. Chegamos ao ponto do delírio.

E prefere uma forma realista de contar a sua história..

É algo que me agrada muito. Há qualquer coisa no realismo, na fabricação do realismo, que adoro. Eu adoro a escolha da ficção, a sua forma, a interpretação do Lindon. Não prefiro o documentário, porque na ficção tenho na mão os utensílios da dramaturgia que posso tornear, criar, sem trair a palavra de cada personagem.

Temos um Cinema que testemunha o mundo e os homens que vivem nele com a utilização dos utensílios da dramaturgia que tornam a história apaixonante, até sexy. Acho que este é o meu filme mais “sexy”. De todos os que fiz. Até a utilização da música ou não, procuro dar aos espectadores algo interessante e agradável de verem.

E como trabalha com os atores, tudo está escrito, não há improvisação?

Tudo está escrito, não há improvisação. Nós construímos o suspense dentro de cada cena, isso não se improvisa. Tudo está escrito, eu passo muito tempo investigando e recolhendo informação. Quando reuno isso tudo, escrevo com o co-argumentista a criação das cenas. É como o motor de uma viatura. Ele só funciona de uma maneira. Eu peço isso aos meus atores. Eu dou-lhes os textos e digo que não podem inventar coisas, mudar a ordem das coisas, mas podem dizer essas mesmas coisas ao vosso jeito. Isso faz-se de forma muito natural. (…) Tudo está escrito, até os insultos.

Começa o filme com uma citação de Brecht. Porquê? E há algo de Eisenstein nele?

Não vou pelo Einsentein. A frase de Brecht, na verdade foi um advogado com quem trabalho muito que me explicou como um combate se trava. Foi ele que me “deu” essa frase, que é bastante iluminada na forma de devolver a dignidade ao homem. Aqueles que combate podem sempre correr o risco de perder, mas se não combatemos perdemos sempre. Tudo isso serve para denunciar um sistema onde os homens lutam. O terrível é que o filme faz a constatação trágica que os homens e as mulheres lutam contra um sistema que os impede sempre de ganhar. É isso que é trágico. Porque quando combatemos com armas desiguais, existe algo de anormal, de indecente.

O filme testemunha a indecência do nosso mundo. No papel, o capitalismo tem a sua coerência. Eu vendo, tu compras, etc. Como o socialismo e comunismo, que também tem a sua coerência. Mas quando qualquer um desses sistemas vai até à sua zona de deriva, que é o que acontece hoje em dia, em que isso é legitimado e validado pelo poder político, pensamos: Em que mundo vivemos? O que é que fazemos dos homens e das mulheres? Que ideia é essa do mundo em que tudo está ao serviço do lucro? E lucro, para algumas pessoas.

E atenção, quando digo isto não estou a ser um esquerdista perigoso. É uma questão de bom senso. E não consigo conceber um mundo que constrói a sua fortuna à custa do sofrimento dos homens e das mulheres. Não é preciso alguém chamar-se Gandhi para dizer isso. Creio que basta haver bom senso.

Novos projetos. Novamente políticos?

Depois de A Lei do Mercado havia algo que gostaria de ter levado em frente sobre personagens conectadas ao mundo (…) Vou começar a escrever um novo guião, novamente com a ideia do que faremos dos homens e das mulheres neste sistema.