Terça-feira, 19 Março

Xavier Gianolli: “Não são os impostores que me interessam, são aqueles que querem acreditar neles”

 

Depois da passagem pela Festa do Cinema Francês, A Aparição estreou nos cinemas portugueses. A história de um inquérito canónico após alegadas aparições da Virgem Maria coloca frente a frente Vincent Lindon e Galatéa Bellugi, num drama construído como um thriller onde factos, ciência, fé e religião se misturam onde as dúvidas são mais que as respostas. 

Estivemos à conversa com Xavier Gianolli, cineasta conhecido por obras como L’Origine, Super Star e Marguerite, o qual nos falou deste seu novo filme, da sua cinefilia e dos projetos que tem para o futuro.

Sei que é um verdadeiro cinéfilo, como começou essa cinefilia?

O meu pai era jornalista e escrevia sobre o cinema, por isso cresci sempre com a ideia que o cinema é mais que um mero divertimento. Desde cedo mostrou-me filmes que passavam na televisão e depois disso discutimos sobre eles. Na época, quando estava na casa dos dez anos, o meu pai era acima de tudo um entrevistador. Ele fazia-me longas entrevistas depois de vermos o filme. E eu faço isso agora com o meu filho, porque isso obriga-nos a falar das fitas e a compreendê-las. Para além disso, o meu vizinho de cima, que era um cantor muito conhecido em França [Christophe], era também um cinéfilo e tinha um pequeno projetor. Vi com ele muitos filmes em 35mm, muitos deles raros. Foi assim que cresci com o cinema sempre ao meu lado…

E quando decidiu ser um cineasta?

Estudei literatura, queria ser professor de francês, de literatura francesa. Estava na Sorbonne e havia muito cinema ao meu redor. Ia muito ao cinema, escrevia sobre cinema, especialmente críticas. Depois comecei a ir a filmagens, conheci pessoas, fiz alguns estágios, conseguindo ser assistente. Até que um dia fiz a minha primeira curta-metragem, com um assistente de câmara com quem fiquei amigo, adaptando uma novela, em 1992.

Tinha um orçamento muito modesto, mas o melhor é que tive a hipótese de enviar o guião a bons atores, como o Philippe Léotard e a Christine Boisson, que tinha participado no Identificação de Uma Mulher (1982), do Michelangelo Antonioni.

Encontrei-os quando era assistente, dei-lhes o guião e eles aceitaram. Não é muito boa a minha primeira curta-metragem, mas aprendi muito. Depois decidi ser produtor e criei a minha empresa de curtas-metragens. Tive uma curta [L’Interview] em Cannes no ano em que o Martin Scorsese esteve lá no júri [1998], o que acabou por ser uma surpresa do destino, porque ele era um dos cineastas que mais gostava. Foi graças a essa curta – que ganhou o prémio de melhor filme esse ano – que pude fazer a minha primeira longa-metragem…

E chegou a produzir filmes do Olivier Assayas…

Eu tinha uma empresa de produção, chamada Elizabeth Films. Abri essa empresa com um associado e nós produzimos os filmes de outros realizadores. É importante referir o nome de alguém que me acompanha depois as curtas-metragens até hoje, o Jacques Fieschi, que foi argumentista de filmes do Maurice Pialat, de Claude Sautet, da Nicole Garcia. É um homem extraordinário, de enorme cultura, que esteve numa revista chamada Cinematographe, que se apresentava como alternativa – bastante mais interessante – ao Les Cahiers du Cinéma. (…) O Jacques apresentou-me a muitos cineastas que conhecia e foi assim que conheci o Assayas, o Benoît Jacquet . Foi assim que produzi os filme dele [Demonlover e Clean].


Xavier Gianolli e Jacques Fieschi | © Juliette Malveau

E como nasceu a ideia do A Aparição, deste inquérito canónico?

Tive uma educação católica e isso impressionou-me muito. Muito mais a mim do que a amigos da escola com quem falo e estão-se nas tintas para isso. Já fiz psicanálise e o curioso é que descobri o cinema ao mesmo tempo. Tudo isto se passou, vamos dizer, entre os 10 e os 14 anos, e o catecismo contou-me uma história extraordinária. Eu era um jovem rapaz que interrogava a sua sexualidade, a sua culpabilidade, etc. E como via ao mesmo tempo todos aqueles filmes, por alturas de 1987 e 1988, tudo isso se fundiu. (…) Depois há qualquer coisa no cinema que me tocava nos temas cristãos, mesmo que fosse incapaz de os analisar e compreender. (…) E há algo que na educação cristã e católica que puxa à introspecção, a uma “solitude” juvenil à qual me conectava. À vez, quer o cinema, quer a educação católica, impuseram-me uma atitude de inquietação em relação a mim mesmo e com o mundo. (…) Eu vivo como alguém que se observa, que se julga, e onde se instalou uma melancolia um pouco à maneira da Córsega.

Agora já não sou praticante [católico], mas essa questão [religiosa] persegue-me. Interessa-me. Dá-me medo. Eleva-me. Em todo o caso, nunca deixei de me interrogar se tenho a fé. Se não tenho. Será que essa fé é pura? Será que devia procurar mais para tê-la? Tudo isso… 

Há algo seu [biográfico] na personagem do Vincent Lindon?

Eu sou exatamente as duas personagens [Jacques e Anna]. Quando fiz os estudos literários, queria investigar. Fiz um mestrado sobre um escritor que começou como discípulo do Emile Zola, ou seja muito realista, mas terminou tal como o pai do surrealismo, perseguido pela questão da fé. Essa tensão, essa questão sobre o sobrenatural, essa dimensão da vida que nos escapa, mas que ao mesmo tempo é algo bastante concreto, que faz parte da dúvida e do inquérito, são coisas que continuam a interessar-me. Por isso digo que sou como a personagem da jovem e ao mesmo tempo sou a personagem que faz o inquérito; o jornalista que se interroga.

 

E qual é o seu método de trabalho, documenta-se muito sobre o assunto…

Em cada um dos meus filmes, e penso nisto como espectador, o que interessa é a qualidade da documentação do universo que quero filmar. Fiz um filme sobre um homem que constrói uma auto-estrada (L’Origine, 2009], ou sobre uma cantora [Marguerite], e passei uma quantidade enorme de tempo a registrar coisas, a fotografar e a acumular material sobre os temas. Começo sempre por fazer um trabalho de jornalista, tenho uma espécie de intuição para as coisas que não sei bem de onde vem.

Neste caso, li um artigo de um jornal em que se esperava uma decisão do Papa sobre aparições em Medjugorje, na antiga Jugoslávia, que são muito criticadas. E foi aí que vi o termo: inquérito canónico. Foi então que me questionei. Mas o que é um inquérito, uma comissão de inquérito? Por isso, a ideia de fazer algo muito concreto, um estudo documental, mas ao mesmo tempo sobre algo sobrenatural, agradou-me muito. Achei isso muito moderno e interessante, como a abordagem religiosa… 

E visitou locais de “aparições”, como Lourdes?

Sim, quando era adolescente. E nessa altura não tinha dúvidas nenhumas. Quando fui a Lourdes, a Fátima, sentia: alguma coisa se passou. Na altura não tinha nenhum espírito crítico. Para mim era uma certeza. Hoje em dia não. Acho que temos de decidir em crer (ou não). 

Não acredita então em milagres?

Sim, mas não tenho certezas. Não sei se quero acreditar naquele milagre ou se acredito mesmo. Acho que são os dois. E se eu preciso de acreditar?

Sou obcecado pelo medo da morte.(…) com a grande questão do senso das nossas vidas (…) A mensagem cristã, da grande esperança, é bem interessante. Lembro-me que quando estava a escrever, perguntei a um padre se quando morresse teria menos medo devido à certeza de uma vida eterna. Ele respondeu-me que no momento de fechar os olhos esperava não se ter enganado.

Eu estudei a antropologia, a história do cristianismo, li teses, aberrações e absurdos históricos e quanto mais lia mais em dúvida ficava. E penso que, mesmo que tudo isso seja uma invenção dos homen, tudo é ainda mais belo e necessário. Mas tenho de dizer que não sou católico. Sou cristão. A mensagem cristã está sempre em todo o lado. (..) Aquilo que resta da mensagem cristã na nossa sociedade é que faz com que não vivamos no caos e na guerra. O respeito pelas pessoas, a atenção pelos pobres. Mesmo que as pessoas já não vão à Igreja, mesmo que sejam laicos, não importa. A mensagem passou. Toda a gente hoje em dia sente-se tocada pela questão dos migrantes, toda a gente se sensibiliza com a pobreza nas ruas, e isso são invenções do cristianismo. 

Como tem sido a resposta e reacção ao seu filme das pessoas cristãs e católicas em França?

Excelente. Eu tinha medo. Até os padres e bispos dizem que são boas as dúvidas. Os católicos sentiram que fui bastante respeitoso, mas não seriam eles também que me iam impedir de ter e lançar as dúvidas. (…)

Um dos filmes que se atravessa frequentes vezes na minha vida é o Taxi Driver, porque há nele uma falta de pureza. Derradeiramente é um filme de “Jihad”. Ele transforma-se numa espécie de jihadista, um extremista. Estes temas vivem em mim. 

Sei que há um padre verdadeiro no seu filme…

Sim, é verdade, numa cena no início. Ele é professor de literatura e padre. Nas minhas filmagens eu tenho sempre especialistas. Eclesiásticos, historiadores, etc… 

E falou com alguém que realmente tenha feito um inquérito canónico?

Sim e li o seu livro, Faussaires de Dieu, (Joachim Bouflet), sobre as imposturas de aparições. Li o seu trabalho e no fundo ele é bastante céptico. Ele disse que falou uma vez com uma mulher de L’ile-Bouchard que assistiu a aparições e que quando estava a falar com ela, a mulher levitou. Ele contou-me isto um mês depois de eu estar a trabalhar e falar com ele. Isso interessou-me bastante. Não sei se ele viu, se quis acreditar que viu, ou imaginou, mas em todo o caso, é bastante incrível essa tensão entre o trabalho de historiador, de recolha de documentação, e depois este evento… 

Os impostores, as falsas promessas, são algo que o fascina na sua cinematografia…

Não são os impostores que me interessam, são aqueles que querem acreditar neles. Por exemplo, L’Origine é o início da Bíblia (No princípio…). O que me interessa nesse filme é saber se precisamos acreditar em alguém que quer construir uma estrada. Em alguém que crê que é cantora (referência ao seu filme Marguerite). Nos meus filmes, a questão é a nossa necessidade em acreditar (em algo). A impostura, os escrotos da sociedade, são vulgares. O que me interessa é a nossa necessidade em projetar os nossos desejos e esperanças em alguém … 

Quando escreveu o guião pensou no Lindon para o papel de Jacques?

Sim, conheço-o há muito tempo e o Vincent interpreta muitos papéis sociais atualmente [La Loi du Marché, En Guerre] e essas personagens são muito concretas, não têm uma dimensão espiritual. Para mim, ele era o ator perfeito. A sua aparência, o seu talento. (…) A minha impressão do Vincent [como ator] é a de alguém a quem não conseguimos mentir, alguém que vai sempre procurar a verdade… 

E como escolheu a Galatéa?

Foi um milagre (risos). Eu tinha dito ao produtor e ao Vincent que não faria o filme se não encontrasse a atriz perfeita para a Anna. Nós tínhamos previsto seis meses de casting e eu não sou o tipo de pessoa que fica a ver os atores apresentarem-se:”Olá eu sou a Galetea”. Isso não me interessava, elas tinham de me convencer contando uma aparição. Ela chegou duas semanas depois do início do casting. Para mim era evidente que era a escolhida. Contou-me a aparição, como a vemos a fazer no filme, num plano fixo de quatro minutos. Foi esse o teste. Para mim era evidente. Ela tem qualquer coisa de contemporâneo e físico como as atrizes que vemos nos filmes dos irmãos Dardenne, mas ao mesmo tempo tem uma dimensão insólita.

Eu não queria de todo uma espécie de Bernadette de Lourdes com uma aparência bela, queria alguém contemporânea. Ela tem todas essas qualidades miraculosas, de ser muito carnal, concreta e ao mesmo tempo possuir uma aura e uma dimensão especial.. 

Como é o seu método de trabalho com os atores, dá espaço à improvisação?

Não.

Tudo é escrito?

Tudo é escrito, até as pausas. Bem, um gesto sim, pode ser improvisado, mas eu também escrevo os gestos no guião. Eu escrevo se a personagem olha para cima, baixa os olhos… Eu preciso disso. Não sou a favor, de todo, da improvisação no cinema…(…) Acho que um dos filmes mais belos que já vi foi o Breaking The Waves (de Lars Von Trier), mas [apesar de aparentar a tal improvisação] eu vi o guião e está lá tudo escrito. É extremamente preciso…

Sei que está a trabalhar num novo projeto, baseado numa obra de Balzac. Já finalizou o guião?

Sim.

E vai filmar quando?

É difícil dizer, pois é um projeto enorme. É o Ilusões Perdidas. É a história de um jornalista – no início do jornalismo. Tem vinte anos, chama-se Lucien, é um idealista, poeta que se aborrece na província. Ele é amado e protegido por uma mulher, uma espécie de Madame de Bovary, que ama a literatura. Ele decide ir a Paris e quando chega lá descobre aquilo que vai ser o século XX: uma civilização que se vende à lei do lucro. O seu trajeto vai ser o de uma aprendizagem bastante brutal da vida, perdendo-se nessa sociedade. (…) O Marx adorava Balzac. No Ilusões Perdidas nós vemos o nascimento do mundo em que vivemos hoje, onde o lucro comanda tudo, onde tudo se vende. (…) É a história de um jovem mas ao mesmo tempo abraça um movimento civilizacional. 

E já tem alguns atores em mente para o filme?

Nenhum. E também já disse que se não encontrar o ator ideal para fazer o papel desse jovem, não farei o filme. 

E já tem o financiamento para a obra?

Soube ontem do interesse da Gaumont, o que é semelhante a estar nos EUA e a Warner querer assumir o projeto. Ainda assim, existe sempre a possibilidade do filme não ser feito. É uma fita cara. Vamos ver, mas o importante é que adoro a ideia de fazer um filme sobre este tema É um filme importante para a juventude hoje em dia. Gostaria que quando o meu filho fizer 15 anos, visse o filme. 

Numa conversa com o Jean-Paul Rappeneau, ele disse-nos que era difícil encontrar financiamento atualmente para os projetos. É mesmo assim?

Sim, mas é em todo o lado. Eu quando encontro cineastas argentinos e italianos, e descrevo como procuramos financiamento, eles dizem-me que “vivemos no paraíso“. O Jean Paul também faz filmes muito caros e tem atualmente 86 anos. Para todos os cineastas com essa idade, é difícil. Por isso, quando se vê o que se passa em todo o mundo, acho obsceno que um francês se possa queixar dessa questão. Nós fazemos 200 filmes por ano!! 

E as novas plataformas. Acha que um dia pode trabalhar com a Netflix ou Amazon, por exemplo?

Sim. Já refleti muito sobre isso, mas sim. A partir do momento em que me dão liberdade editorial, sim. Se trabalhar para a Netflix for como trabalhar para os grandes estúdios nos anos 30, seria difícil eu aceitar. Mas se for simplesmente como um produtor qualquer, sim. Aqui a questão é saber se aceitas que os teus filmes não sejam apresentados nas salas de cinema. O financiamento não é a questão, mas sim onde ele vai surgir. Será que para um cineasta a ideia de fazer um filme que não vai estrear nas salas é bom? Se o Scorsese disse que sim, acho que todos nós temos de pelo menos ponderar sobre a questão.

Agora uma questão curiosa. Você foi ator no Valerian do Luc Besson, a sua primeira experiência nesse campo. Como é que isso aconteceu?

(risos). É o drama da internet [as pessoas descobrem tudo] (risos). Eu conheço o Besson…

Sim, é padrinho da Escola de Cinema dele…

Exatamente. A escola de cinema dele é um excelente projeto, apesar de ter muitos problemas atualmente, como certamente sabe. Mas acho que esses problemas vão se resolver. É uma escola gratuita para pessoas de todos os campos…

Um dia fui lá, encontrei o Besson no set do filme. Eu sou daquelas que pessoas que ouve músicas estúpidas, que vê os filmes do The Rock com gigantes, mas ao mesmo tempo adora o Mizoguchi. Equilíbrio os meus gostos. O único ato snob que tenho é de questionar se isto me dá prazer ou, se tenho interesse. Por isso, encontrar alguém como o Besson e tudo o que fez na vida é muito interessante. Presentemente ele está nos EUA, e tem em França acusações de violação, como deve saber. Ele é alguém muito particular, interessante, insólito. Podemos não gostar dos seus filmes e dos produzidos pela EuropaCorp, mas isso é outra coisa. Eu moro a cinco minutos dos estúdios e quando vejo que há uma gigantesca filmagem lá, ao estilo de Hollywood, decors absolutamente geniais, como nunca vi em França, fui lá. Ele é secretivo em relação ao filme, mas disse para eu aparecer. Por isso foi divertido ver o que se passava, até que ele me disse se eu não queria fazer um pequeno papel. Foi divertido. 

Fez o Marguerite e depois surgiu a cinebiografia Florence, Uma Diva Fora de Tom, projeto sobre o mesmo tema. Viu esse filme?

Vi. Inicialmente eu tinha proposto a Pathé fazer o Marguerite com eles, mas recusaram. Seis meses depois descobri que iam apoiar um filme sobre o mesmo assunto.

E gostou do filme?

Não, mesmo nada. Creio que eles não compreenderam. Eu quando digo a verdadeira história de Florence Jenkins, isso não é um filme. Ela é ridícula, é atroz. Eu penso em Emma Bovary, uma mulher que se refugia no imaginário, pois a realidade diminui-a. Não fiz uma heroína um pouco romântica, inspirada e louca, pois isso não está na história verdadeira. Foi por isso que não lhe chamei de Florence. (…) Sinceramente acho que nem a Meryl Streep nem o Stephen Frears sabiam que havia outro projeto a ser feito na linha do deles.

O nosso filme esteve muito bem todo o mundo, pelos festivais, etc. Nas filmagens do Marguerite eu tinha um assistente que tinha trabalhado no Amadeus e que era amigo do Milos Forman, e ele contou-me as aventuras das filmagens de Valmont (de Forman) e de Ligações Perigosas (de Stephen Frears). E o Milos Forman disse-lhe: “são sempre os pequenos filmes que ganham“. Ele disse-me isso durante as filmagens, que eu é que estava fazer o pequeno filme, e que seria eu que “ganharia”. E assim foi…

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