Quarta-feira, 24 Abril

Juliana Rojas: «temos dificuldade a chamar o horror de Cinema»

Marco Dutra e Juliana Rojas são a dupla do momento no que refere ao cinema fantástico do Brasil. As Boas Maneiras, filme que a própria realizadora descreve como o seu trabalho mais complexo, é uma fábula tentadora de um universo paulista alternativo, a história de um monstro que queria ser um menino de verdade e de uma mulher que encontra a inserção na companhia deste.

Vencedor do Prémio Especial de Júri no último Festival de Locarno, As Boas Maneiras comporta-se como uma revisão dos principais elementos do cinema de terror e não … passando pelo mundo da Disney e do cinema de caracter social. O C7nema falou com Juliana Rojas sobre o projeto que tem conquistado a crítica, público e um lugar no panorama fantástico brasileiro.

 

É sabido que a ideia deste filme nasceu a partir de um sonho de Marco Dutra. Como desenvolveram um filme a partir daí?

Sim, a base do filme surgiu nesse sonho, mas tinha poucos elementos, nós trabalhamos nessa imagem, essa sensação transmitida e atribuímos contornos. O que ele sonhou foram apenas duas mulheres num lugar isolado que criavam juntas uma criança monstruosa. Dessa primeira imagem desenvolvemos a história, o de duas mulheres coexistindo numa sociedade onde também habita uma criança monstro, que evolui para um lobisomem.

O porquê da escolha de um lobisomem?

É uma criatura muito próxima da nossa cultura, aliás, muito popular no Brasil, principalmente nas zonas rurais. Além disso é uma criatura metade humana, metade besta, simbolizando um conflito interior, uma dualidade que serviu de inspiração para vários aspetos do filme. Como alusão a essa mesma dualidade, desenvolvemos um filme em duas partes, traçada pelo nascimento, cuja primeiro encontramos duas mulheres de realidades opostas, uma da periferia, outra do centro, uma pobre, outra rica, uma branca e a outra negra. As Boas Maneiras é um filme que fala sobre os opostos, essas sanções, os conflitos que existem e que são quase naturais de São Paulo.

Mas de certa forma o lobisomem é um “monstro” universal, este enredo passa-se em São Paulo, mas poderia decorrer em qualquer outro lugar do Mundo.

Sim, é uma lenda universal. Existem várias culturas “assombradas” por esta criatura mítica. Temos histórias deste género na Europa, na Ásia, e na América do Sul, para além de não envolverem apenas lobos. Existem outras lendas de criaturas meio humanas, meio animais, que perpetuam uma fascinação pela metamorfose.

Falando em metamorfose, há pouco falava das duas partes, porém, em As Boas Maneiras está presente um tom de constante transformação.

Sim, é um filme que metamorfoseia devido à nossa preocupação de tornar isto numa espécie de fábula. Na nossa obra sempre tentamos explorar esses caminhos – o cinema de género. Principalmente salientando o fantástico e o horror, sempre ligados a um universo de tensões sociais, mas os Boas Maneiras é um filme onde realmente queríamos assumir esse tom de fábula. Então criamos um universo fantástico, a forma como compomos a obra, desde a fotografia até ao body painting que usamos nas paisagens. Essa metamorfose tem a ver com isso, uma maneira lúdica de como se tivessemos contando uma fábula para além do visível,« e isso permite transitar por vários géneros. É dessa matéria que as fábulas são feitas; comédia, romance, elementos fantásticos …

… e musical.

Sim [risos], musical também, principalmente nos desenhos animados da Disney.

Então existem aqui influências desse mesmo universo?

Nós tivemos bastante influência nesse Mundo Disney, principalmente da Bela Adormecida e da Cinderella, mas ao mesmo tempo fomos buscar influência das peças de Brecht, a sua maneira de trazer o ponto de vista da personagem à tona, conservando um aspeto crítico e irónico. Resumidamente, As Boas Maneiras bebe um pouco desses dois mundos, o lado lúdico vindo diretamente da Disney e o teatro épico do Brecht.

Marco Dutra, Marjorie Estiano, Juliana Rojas, Isabél Zuaa

A Juliana juntamente com Marco Dutra têm sido os nomes, não diria mais relevantes, mas destacáveis do cinema de género brasileiro. Pelo menos do que chega a território internacional. A minha pergunta é como vê atualmente a industria de cinema de género no Brasil?

Sempre houve cinema de género no Brasil e até mesmo o de horror, apesar de muitas vezes estar embebido num estilo mais barroco que certos filmes possuem. Consigo arranjar o exemplo de Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade, uma visão do Brasil enquadrado num olhar de fantasia que não se encontra necessariamente inserido nos códigos do horror. Temos ainda o José Mojica, o nosso Zé do Caixão, uma figura notória que levou este tipo de cinema para o resto do Mundo, mas que obteve pouco reconhecimento formal pelo grande público. Só que as pessoas voltaram a querer ver e a fazer filmes do género, e aí entram nomes como Gabriela Amaral, que realizou algumas curtas interessantes e a longa O Animal Cordial, Guto Parente com O Clube dos Canibais e Rodrigo Aragão, que tem feito obras como Mangue Negro e A Noite dos Chupacabras.

O que quero dizer é que estamos a viver um momento em que o público procura o cinema de género e este tem tido repercussões comerciais. Aliás, é tudo um ciclo, que funciona como no resto do Mundo. Os filmes de horror surgem com sucesso depois quase desaparecem até reaparecem com igual força. Porém, existem sempre fieis. Neste momento estamos num ciclo próspero, não só no cinema, mas como também na televisão.

A verdade é que o facto um filme como As Boas Maneiras ter vencido um prémio num festival como Locarno é um indicador de uma valorização do Cinema de Género. Aliás, querendo acrescentar, um filme como A Forma da Água ter conseguido arrecadar o Óscar de Melhor Filme e o prémio máximo em Veneza é uma evidência que estamos a assistir numa reviravolta quanto ao estatuto do cinema de género.

Ainda é um género que sofre com algum preconceito. Alguns filmes de terror que começaram a circular em festivais de renome e a conseguir aclamações por parte da crítica obtiveram uma espécie de título, os “pós-terror”, isso denota o preconceito de que um filme de horror não poderá ser um bom filme. O horror continua a ser um género e um género mutável, multifacetado. Ora, temos o terror com tons de comédia, ora temos com perfil de thriller psicológico, dramático, ou simplesmente o slasher. O problema é que temos dificuldade a chamar o horror de Cinema, para alguns não passa de um subgénero. Mas existe a mudança, não falo apenas da premiação do meu filme ou da A Forma da Água, mas em Locarno houve uma retrospetiva do Jacques Tourneur, que era um cineasta que na sua época fazia o cinema B e hoje é homenageado num dos maiores festivais de arte do Mundo.

Cat People (Jacques Tourneur, 1942)

Só o conceito de “cinema de género” é um pouco denegridor.

É, porque tudo é um género. O drama é um género, o problema é que quando se fala de género automaticamente dirige-se ao horror. É como se o drama fosse a derradeira normalidade.

Voltando agora ao filme As Boas Maneiras, gostaria que salientasse os efeitos visuais tendo em conta os recursos que obtiveram.

Nós tivemos uma coprodução do Brasil com a França e recebemos um fundo francês de inovação tecnológico que nós direcionamos para os efeitos especiais. Então foram duas empresas francesas responsáveis pelos efeitos. Uma chama-se Atelier 69, que concretizaram os efeitos práticos e a outra, Mikros, teve responsabilidade nos computorizados.

Aí eles colaboram connosco no argumento de forma a discutir as maneiras mais fiáveis de implantar tais efeitos e que tipo se enquadraria em determinadas sequências. Ajudou bastante esta proximidade com os departamentos de efeitos que nos arranjaram soluções criativas para cada situação, tudo dentro das possibilidades da produção. As Boas Maneiras foi o nosso filme mais complexo, que exigiu um detalhado planeamento, principalmente na visibilidade da emoção de cada personagem.

Em relação à fotografia, da autoria de Rui Poças?

Foi muito bom trabalhar com o Rui. Nunca trabalhamos juntos, mas como primeira vez foi uma experiência incrível. O Rui é uma pessoa sensível, colaborativa e que teve uma boa relação com Fernando Zuccolotto, que era o nosso diretor de arte. A parceria dos dois resultou em algo fundamental para construir este mundo fantástico. Uma cidade de São Paulo com uma paleta bem diferente de cores, mas este universo e sua criação foi bastante discutida entre todos, principalmente na utilização da dualidade de ambientes, diferenciadas esteticamente. Para nós essa divergência visual da periferia com a cidade é uma alusão ao castelo e a floresta de qualquer fábula, o que apenas foi possível com esta união forças entre a fotografia e a direção de arte.

Novos projetos?

Eu e o Marco estamos a desenvolver uma nova ideia, a história de uma casa assombrada. Contudo, ambos temos projetos individuais, o Marco vai dirigir um filme juntamente com Caetano Gotardo, o realizador do O que se Move, que se intitulará de Todos os Monstros.

Tendo em conta que As Boas Maneiras é uma fábula, o Brasil de hoje é também uma?

[risos] O Brasil de hoje? Nem sei se é uma fábula ou um pesadelo. O país está numa situação muito difícil em termos políticos. É muito preocupante e surreal de que este cenário encontra-se tão escancarado, porque existe obviamente uma percetível manipulação dos factos e na condução dentro dos atos do Governo e da Judiciaria para beneficiar quem está no poder. Isso leva-nos a uma sensação de impotência.

Este ano vamos ter eleições e ninguém sabe o que realmente irá acontecer, nem sequer sabemos ao certo quem são os candidatos.

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