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Fellipe Barbosa: «é possível alguém com um pensamento liberal de direita ter um coração humanista»

A viagem de um economista numa Africa subsariana que acabou em tragédia em 2009. Gabriel Buchmann estava decidido a deixar para trás a sua vida planeada para se aventurar nos mistérios do continente. Mas essa mesma, custou-lhe caro. Gabriel acabaria por ser encontrado sem vida no Monte Mulanje, em Malawi.

Gabriel e a dita Montanha estão agora imortalizados na terceira longa-metragem do cineasta brasileiro em ascensão Fellipe Barbosa, um filme aventureiro que tenta desvendar “o que realmente aconteceu com o jovem”, mas antes enviusa numa proximidade com a figura, com o ser humano que sonhava um dia ser Deus em África.

O C7nema teve o privilégio de falar com o realizador após a apresentação do filme na Semana da Crítica, no Festival de Cannes.

O que mais atraiu na história de Gabriel Buchmann para avançar com um filme?

Julgo que foi essa personagem, para além de ter sido um amigo meu, que me inspirou muito. Aquele e-mail enviado do Uganda teve bastante divulgação pela imprensa brasileira quando eele desapareceu. Ali ele descreve uma felicidade, um estado de alma que julgo conhecer naquela região. Até porque estive no Uganda em 2007, dois anos antes dele morrer. Eu não queria voltar, queria continuar, estava muito feliz ali, então quando li esse e-mail, identifiquei-me com esse sentimento e assim apropriei-me desse assunto para fazer o filme.

E como foi esse regressar a África?

Não foi bem um regressar, viajei pelos sítios onde ele esteve. Estive somente no Uganda e a rodagem do filme não atravessou o país. Fizemos do Quénia para a Tanzânia, mas não fizemos a volta pelo Lago Victória tal como ele fez, atravessando Uganda, Ruanda e Burundi. Encurtei a viagem de sete para quatro países. Mas essencialmente revivi aquele sentimento de querer ficar ali para sempre, e é esse mesmo que queria compartilhar. Acho que foi isso um pouco – ficar ali para sempre.

Então falamos da África do Gabriel … mas seguindo as pisadas do mesmo, tentou também decifrar o mistério. O mistério do seu desaparecido.

Exatamente, a questão do mistério. Assim como outras que não tinham muita resposta para nós. Por exemplo, o porquê dele ter dispensado o guia? Tentei arranjar respostas dentro do possível, e o filme converteu-se nesse aspeto num retrato do Gabriel através desses múltiplos pontos de vista, aqueles que o conheceram na sua jornada.

Falando nisso, como foi esse trabalho de pesquisa?

Muito trabalho e muita perseverança de tentar encontrar todo o Mundo. Tinha fotos, e-mails, cartas, por vezes somente nomes, e anotações do seu diário. Porém, muita dessa informação tinha expirado com o tempo, já não valiam mais. Por exemplo, no Quilimanjaro levei o IPAD com as fotos dele para a entrada do parque e ficava perguntando para qualquer um se conheciam ele ou se estiveram com ele. Para o Lenny, que esteve aqui [referência à sua presença na premiere na Semana da Crítica, em Cannes], o qual foi muito difícil de localizar, tive que ir e voltar ao Quénia duas vezes para conseguir encontrá-lo. Tony Montana do Zanzibar encontrei totalmente por acidente.

Mesmo estando catalogado como ficção, no fundo Gabriel e a Montanha é um documentário.

É difícil caracterizá-lo como um documentário, porque simplesmente tenho a confiança que não fiz um documentário, apesar de ter utilizado as mesmas técnicas para o concretizar. Sim, temos os testemunhos, por exemplo, as entrevistas que são em off e principalmente nesse conceito de ouvir as personagens que se encontravam no filme. Bem, pelos vistos poderemos defini-lo como um documentário nesse estado, porque muitas vezes foram eles que coordenavam a cena, falavam-me do que realmente aconteceu e direcionavam toda a narrativa em prol dessas memórias. Eu ouvia muito eles e tentei contar sobretudo a história deles, personagens africanas que se cruzaram com o destino de Gabriel.

Para além dessas pessoas que cruzaram com o destino de Gabriel em África, ainda contou com o relato da namorada. Até que ponto ela foi importante neste seu trabalho de investigação?

A namorada está viva, graças a Deus, e foi instrumental para a escrita do enredo. Porque esteve presente nesse período. Por outras palavras, foi uma testemunha e as personagens que se cruzaram com ela foram muito mais fáceis de localizar, até porque deu-me as pistas corretas e para onde seguir e procurar. Só não me deu a do Rashid. Esse tive que ir atrás, porque ela não queria que eu encontrasse-me com ele. [risos]

Da esquerda para a direita: Manuela Picq Lavinas, Lenny, Fellipe Barbosa e João Pedro Zappa

E teve medo de chegar à derradeira “Montanha”, esse último local de Gabriel?

Muito. Eu tenho muito medo da “Montanha” [Monte Mulanje]. É uma espécie de Deus, no qual tem que se respeitar. Mas, ao mesmo tempo, amo a montanha e preparei muito para a “conhecer”. Subi o Quilimanjaro em 2015, na minha viagem de pesquisa para encontrar as personagens. Tive um ano a treinar, escalando em rocha, eu e a minha equipa, a do cineasta, não de montanhista. É muito difícil subir o Quilimanjaro, fomos 13 e miraculosamente chegamos todos ao topo, porque normalmente menos de 40% das pessoas consegue tal feito.

Podemos encarar Gabriel e a Montanha numa cinebiografia, porém, algo que me fascinou neste filme foi o facto de  não glorificar nem branquear a imagem do Buchmann. Você descreveu-o como um homem de grande coração e ao mesmo tempo cometendo atos de egoísmo enorme.

Exatamente, como o filme não tem um grande objetivo e as personagens detém pequenos objetivos, a narrativa sustenta-se na complexificação das personagens, e como elas são mais e mais contraditórias. Não se imagina que alguém tão generoso, tão desapegado de bens materiais e capitais, possa também ser egoísta a este ponto. Mas é possível, esses dois lados originarem um ser coerente. É improvável imaginar um hippie que venera a cultura local e tenta integrar nesse mesmo quotidiano, e no fundo ser um liberal economista muito próximo da centro-direita. E com Gabriel Buchmann foi possível falar de um tema que é muito caro para mim, a multiplicidade de características numa personagem, que não se anulam, mas que coexistem.

Acho importante isso, principalmente para o Brasil de hoje, o qual urgentemente precisamos de uma reconciliação entre os diversos lados da moeda. Uma reconciliação no sentido de respeito, uma utopia, e não a desconsideração de alguém só por estar no outro lado. Se entrarmos numa discussão no qual desvalorizamos completamente o outro lado, vamos definitivamente perder nesses argumentos. E este filme, assim como esta personagem, demonstra o quanto é possível alguém com um pensamento liberal de direita ter um coração humanista.

Gabriel e a Montanha é uma coprodução entre Brasil e a França. De que forma é que a estratégia de coproduções pode servir como uma solução para a cada vez mais difícil indústria cinematográfica brasileira, principalmente para um filme de caracter mais alternativo como o seu?

Atenção, eu não sou pioneiro nas coproduções francesas, nem fui eu que “abri essa porta”. Já a minha obra anterior, Casa Grande, contou também com coprodução francesa. Funcionou muito bem aqui em França e obteve uma receção calorosa por parte da crítica e com direito a figurar em muitas listas de melhores do ano. Foi um cenário bem orgânico mesmo, natural direi ainda. O mesmo que “abraçou” Casa Grande tornou-se também produtor deste Gabriel’, mas esta coprodução francesa apenas surgiu quando terminávamos de subir o Quilimanjaro. Mas sim, poderá ser uma solução para esse cenário cada vez mais negro, o de fazer cinema independente no Brasil.

Quanto a novos projetos?

Tenho um novo filme que decorre em Berlim e que se intitula de City of Alex, uma produção entre EUA e a Alemanha, desta vez sem o Brasil. Será um triângulo amoroso entre uma pianista, que viaja para Berlim com o seu marido e filha, de forma a reencontrar um amor que viveu no passado.

E tenho outro projeto a ser concretizado no Brasil, Domingo, que será filmado em Pelotas, no Rio Grande do Sul, que remeterá a uma família burguesa meio decadente durante o churrasco do primeiro dia do ano, que coincidirá com o mesmo dia em que Lula toma posse [risos]. Será um filme relacionado com esse medo “de avestruz” (o de enterrar a cabeça na areia sem ver o seu redor), o receio da revolta do proletariado desse dia histórico do Brasil. A aristocracia a visionar um “Brasil virado comunista”.