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João Miller Guerra: «a morte do meu pai foi um importante impulsor desta ideia»

Para João Miller Guerra e Filipa Reis, provavelmente uma das duplas mais proliferas do cinema português nos últimos anos, os seus filmes integram um universo particular com constante olhar na ficção, ou melhor, no ficcionar da realidade. Nesse mesmo mundo, povoam personagens que se transfiguram em cada episódio, provavelmente induzidos numa temática de inclusão social, expatriados ou perseguidores de um “eu” perdido em raízes ocultas.

A paternidade torna-se numa espécie de fantasma em Djon África, a primeira assumida ficção da dupla que explora uma personagem “caseira” desse mesmo Universo, Miguel Moreira, um cabo-verdiano sem terra nem memórias da sua origem. Após ter conhecimento da existência do seu pai, ainda residido em Cabo Verde, Miguel parte numa aventura, ou diríamos antes, desventura num local místico, magnético e ao mesmo tempo desconhecido para si.    

Mas outra aventura nasce no seio desta “peregrinação”, o rumo ao desconhecido levado a cabo pela dupla ao Festival de Cinema de Roterdão, o qual Djon África orgulha-se de integrar a Competição Principal. Um feito, segundo eles, uma alegria, para nós.

O C7nema falou com João Miller Guerra sobre o projeto atlântico a ser apresentado na cidade holandesa, a sua criação, o seu simbolismo e o que distingue realmente o documentário da ficção e vice-versa. 

Especializados em curtas e médias metragens documentais, este filme foi um enorme passo para vocês. Para além de ser a primeira longa, é também a vossa primeira ficção. Como surgiu a ideia deste filme e o porquê de avançar para este grande passo nas vossas carreiras?

Começou com uma colaboração com o nosso guionista e amigo Pedro Pinho, que trabalhou connosco sobretudo na trilogia Cama de Gato (2012), Bela Vista (2012) e Um Fim do Mundo (2013), o qual realizou. A juntar a isso a morte do meu pai há 5 anos atrás, que foi um importante impulsor desta ideia, aliás, deste grande passo, segundo a Filipa, que foi o de avançar na primeira longa-metragem.

Quanto ao termo “ficção”, este já era bem percetível na nossa filmografia, até porque tivemos sempre bastante próximos, sobretudo formalmente no nosso cinema. Embora as nossas raízes fossem sempre o documentário, desde o inicio tivemos uma vontade de ficcionar aquilo que vemos, e Fora da Vida (2015) foi já um começo disso mesmo. Uma primeira experiência parcial.   

Em Djon África, juntamos o facto de Pedro Pinho conhecer bem Cabo Verde e, como eu estava a referir, com a morte do meu pai nós procurávamos uma história para escrever como nossa longa. Dei por mim a pensar no Miguel, com o qual colaboramos em imensos projetos. Como ele não conhece o pai, nem sequer o arquipélago, às tantas existia algo de universal nesta história, a procura das nossas raízes e a descoberta de Cabo Verde.

O Pedro escreveu a aventura em Cabo Verde, e nós trabalhamos sobretudo com o Miguel, que como era um não-ator, tornou-se difícil recriar os amores e desventuras programados no guião. Os twists e todos os dispositivos que nos poderiam colar com a personagem e ao grande ecrã, daqueles previstos no procedimento criativo, foram transformados, algo que reparamos sobretudo na sala de edição. Tínhamos calculado um lado mais místico / sobrenatural que foi imposto na mesma edição, mas que devido a esta adaptação, a sua introdução auferiu um carácter mais interior, existencialista, à jornada do Miguel, algo mais próximo da minha visão e da Filipa em relação a Cabo Verde.

De certa forma, graças à colaboração com o Miguel Moreira, este Djon África é o último de uma trilogia. Esta composta por Li ké Terra e Fora da Vida.

Para ser sincero nunca pensei devidamente sobre isso. O Miguel trabalhou realmente connosco no Li ké Terra, que assume o mesmo propósito de Djon África, que é a identidade. Nesse caso [Li ké’], era uma identidade burocrática, um jovem impedido de seguir com a sua vida e trabalhar devido à ausência de documentação. Em relação a Djon’, Miguel, não sendo oficialmente português e não conhecer o verdadeiro Cabo Verde, somente um país imaginário que se vai formando na sua mente, embarca nesta procura pela real identidade, o seu “eu”, sob a desculpa, sem a reconhecer, de uma busca pelo pai.

No sentido da trilogia, não sei se propõe, porque ainda fizemos outra experiência, uma curta-metragem escrita pelos habitantes do bairro que filmamos Li ké Terra que se intitulava Nada Fazi (2011). Nesse filme, o Miguel interpreta um personagem ficionado que foi escrito por eles. Em Fora da Vida, que foi uma encomenda da Fundação Francisco Manuel dos Santos, a personagem do Miguel tinha um filho. Esse filme trazia a temática da “subsistência com o ordenado mínimo”, por isso cruzamos as personagens do nosso universo, o Miguel evidentemente, a avó dele e ainda Monique, uma das “brasileiras” de Fragmentos de Uma Observação Participativa (2013). Cruzamos essas personagens e encaramos isso como a nossa entrada na ficção, apesar do conceito ser mais documental que ficcional. Por isso, não sei se chamaria bem isso de trilogia.

“Um filme é um filme, portanto há sempre maneira de “enganar” o espectador”…João Miller Guerra

Mas o que realmente separa a ficção do documentário, e o documentário da ficção? O que diferencia essas duas dimensões cinematográficas?

Para nós, muito sinceramente, não diferencia nada. No meu entendimento, assim como o da Filipa, um filme é um filme, portanto há sempre maneira de “enganar” o espectador. É o facto de chamarmos algo de ficção, e as audiência encararem tudo aquilo exposto no ecrã como ficcionado. No caso de Djon África, muito daquilo que se vê é verdadeiro. Muito do que está ali escrito, descrito e vivido, é meramente real. Onde eu acho que há uma espécie de fronteira, se é que ela existe, é que supostamente num documentário não ficcionaríamos nada, quanto muito reencenar o que já tivesse acontecido, e aqui no Djon África não o fizemos. Provavelmente temos aqui o nosso olhar e o filme talvez descole para algo mais místico e fantástico, e não estarmos presos ao género documental.

Mas para mim não existem muitas diferenças entre os dois mundos. Por exemplo, o Fora da Vida é um hibrido bem real. Eu dei profissões àquelas pessoas que não tinham, dei um filho ao Miguel que ele não tinha. Há quem chame aquilo de documentário, mas existe uma fronteira muito terna.

Há pouco falava desse lado místico, eu diria xamânico, imposto no filme e na aventura de Miguel que leva-nos a uns últimos minutos sobretudos sugestivos.   

O final é aberto à interpretação de cada um e não acho que aqui interesse dar-nos a nossa visão quanto à resolução. Essa questão de se o Miguel volta para Portugal, ou fica na ilha de forma a cumprir as mesmas pisadas do pai, isso está na consciência de cada um. Mas é quase habitual a imagem paternal do pai cabo-verdiano ser sobretudo ausente, é um comportamento pouco europeu.

Em relação a esse comportamento nada relacionado com o parâmetros da Europa, existe algo curioso na essência de ser europeu em Djon África, que vem enriquecer a questão da identidade do filme. Pegamos na personagem de Miguel e percebemos que ele é ilegal em Portugal e quanto a Cabo Verde, é visto como um estrangeiro.

Essa é a mesma dicotomia que já existia no Li ké Terra. Ele é no meu entender um português. Tendo nascido em solo português automaticamente deveria ter um documento português. O problema é que não o tem. Ao invés disso tem um passaporte cabo-verdiano. Estas eram as leis da altura e nem sei se continuam a ser as leis de hoje. Ele teria ainda de fazer prova de residência, 10 anos seguidos sem poder sair do país, para obter a nacionalidade portuguesa. Isto faz com que muitos cresçam toda uma vida para obter uma nacionalidade, e uns tantos não o conseguem.

Muitos nunca se sentem devidamente portugueses. Consequentemente, mais força ganha a raiz cabo-verdiana que os educa, fazendo com que eles, não pertencendo a Cabo Verde nem a Portugal, pertençam somente àquele bairro. Só aquele clube de pessoas que coexistem, e que obviamente “enche-os” de histórias e memórias do arquipélago. E aí existe aquela continuação da cultura cabo-verdiana, os ingredientes todos à mão para fazer uma cachupa, o grogue à venda em qualquer café do bairro, a música cabo-verdiana, ou seja existe aí um prolongar dessa identidade cabo-verdiana.

“Não acredito que o Cinema por si só possa mudar ou ser encarado como uma arma de mudança do que quer que seja” João Miller Guerra

Há pouco falava do facto de Miguel nunca ter estado em Cabo Verde. Toda aquela reação que evidenciamos na sua chegada à ilha foi encenação, ou puramente o registo de um momento de surpresa?

Algo que eu e a Filipa pretendíamos em Djon Africa era colocar o protagonista na sua terra-mãe, sem se sentir devidamente em casa. Por isso, nós fomos três vezes a Cabo Verde, estudar o terreno e preparar a viagem sem o Miguel. Quando ele chegou lá, foi no momento em que começamos a filmar, o registo em filme, o choque identitário com a terra que nunca conhecera verdadeiramente. Queríamos filmar essa surpresa, essas primeiras impressões.

Mas voltando à tua questão, ele é um estrangeiro. Miguel sempre será comparado com um cabo-verdiano europeu que foi deportado e que é mandado para Cabo Verde porque está impedido de residir na Europa. Não é o caso dele, mas tem os mesmos efeitos. Duvido que ele consiga viver em Cabo Verde caso isso fosse possível. Seria muito difícil, ele no fundo é muito europeu.

O vosso Cinema sempre interessou por causas de inclusão social. De certa forma acreditam que o mesmo pode servir de veiculo para o mesmo?

Não acredito que o Cinema por si só possa mudar ou ser encarado como uma arma de mudança do que quer que seja. Não gostaria de sentir que o nosso cinema fosse impositivo ou panfletário de alguma coisa, mas é verdade que muitas vezes faz pensar e que nos dá a conhecer o outro lado. Por vezes o espectador repensa na sua posição, ao ver os dramas e os dilemas desta ou doutra vida. Acho que isso é a riqueza do Cinema, a sua mais valia. Não é obrigatório que assim seja para ter uma boa história, mas quando isso acontece…

Em relação à seleção de Djon Africa no Festival de Roterdão …

Estamos muito contentes. Acho que não houve nenhum português que fosse aceite a concorrer para os Tiger Awards e, infelizmente, no Instituto do Cinema, como vivemos de pontuações, não é um festival tão pontuado como os outros (gostava que fosse). Para mim e para a Filipa foi muito importante, até porque não vivemos de estratégias de entradas nem saídas de festivais e ter do lado de lá, o de Roterdão, um convite muito humilde e direto, viram o filme e gostaram imediatamente. Isso para nós foi demonstrativo de que o convite deles foi mesmo o de querer e não somente o de ocupar espaço na programação.

Sim, em Portugal um filme de sucesso tem que percorrer festivais.

Sim, continuamos a encarar os festivais como cruciais para a carreira de um filme. Primeiro, porque este leva a mais públicos, quer na projeção em festivais, quer no percurso posterior, visto que são os mesmo festivais a colocar um selo de qualidade no poster e no material de divulgação dos filmes. O reconhecimento dado durante a sua passagem nos demais festivais atraiam não só o público, assim como distribuidores ou exibidores.

Novos projetos?

Estamos com uma longa-metragem escrita, que decorrerá no Norte de Portugal, nada terá de relacionado com o universo que costumamos trabalhar. Este projeto envolverá um personagem único que decide ficar numa aldeia e combater, o que chamamos, de fim da ruralidade. Temos ainda outro projeto documental, algo mais virado para nós, e será uma abordagem sobre nós próprios. Provavelmente com a ajuda do Miguel. Um filme que nos retrata….A nossa vida.

De certa forma, esta colaboração vossa com o Miguel Moreira relembra Pedro Costa com Ventura

Não diria que é o nosso Ventura, mas o Miguel está bem presente em nós, ele tornou-se nosso amigo, uma pessoa próxima de nós, e acima disso tem um entendimento do mundo muito particular, bastante diferente da nossa. E isso deixa-nos apaixonados e interessados em ouvi-lo, conhecer o que verdadeiramente o rodeia, e curioso é que o rodeia não é tão diferente do que nos rodeia e sempre é com entusiasmo que ficamos a conhecer o seu ponto de vista.