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Marie Dumora: «fazer filmes é como restituir um pouco a beleza ao mundo»

Marie Dumora estudou Filosofia e Letras Modernas antes de enveredar pelo mundo do Cinema, isto porque «filmar permitiu ligar-me melhor ao Mundo», disse ela ao C7nema, mostrando-se hesitante quanto ao momento exacto em que tal decisão foi tomada.

Depois de uma trilogia em torno das crianças (Avec ou sans Toi; Emmenez-Moi; Je Voudrais Aimer Personne), e dois filmes onde os ciganos eram o foco (La Place; Forbach for Ever), Marie estuda agora os ieniches em Belinda, filme onde volta a trabalhar com uma personagem com quem já se tinha cruzado num filme anterior, a personagem título – aqui apresentada aos 9, 15 e 23 anos, do orfanato ao seu casamento.

O «truc» de Marie Dumora é que filma tudo sozinha, de câmara ao ombro, com lentes de 50mm, como Ozu ou Bresson. Todos esses filmes são rodados a poucos quilómetros uns dos outros, isto no leste de França, onde a personagem de um filme leva ao do próximo, transformando-a a ela também numa nómada cinematográfica. O género de eleição é o documentário, mas ela tem grande dificuldade em se catalogar.

Aqui fica a nossa conversa com a realizadora cujo Belinda foi exibido no último IndieLisboa e recentemente na Festa do Cinema Francês (dia 26/10 no Porto).

Estudou Filosofia, certo?

Sim, mas estudei sobretudo Literatura, pois era o que me interessava.

Esses estudos ajudaram-na e influenciam o seu Cinema?

Sim, de certa maneira sim. Eu sempre adorei ler, em particular as obras da era do Romantismo, e isso influencia a minha maneira de ver o mundo, de colocar questões pessoais e ao Universo, de compreensão do mundo.

E escolheu o documentário como o meio de fazer Cinema…

Sim, mas na realidade, e pode parecer um pouco bizarro dizer isto, mas não sinto que os meus filmes sejam muito documentais… Eu conto uma história, é uma espécie de encontro entre a minha ficção interna e a realidade do que se passa. Eu observo, foco-me no que me interessa das pessoas e depois o filme escapa de mim. É isso que me interessa…

Não estou muito interessada no estilo do documentário de perguntas e respostas, ou onde aprendemos coisas. Nos meus filmes não aprendemos nada.


Belinda

Sim, apenas observa, nem sequer há uma voz off. Não gosta disso, pois não?

Não

Porquê?

Porque isso não me interessa no filme. Gosto bastante de ficção, gosto dos Universos do Romantismo, mas creio que a mise en scène passa pelo que vemos e por aquilo que decidimos ver. Nos meus filmes, sou eu que filmo, sempre com a câmara ao ombro e nunca mudo de lente, sempre a 50 mm, como Ozu e Bresson… Eu não inventei nada, mas é já uma marca para a minha encenação.

Avalio as distâncias, aproximo-me, afasto-me, mas as pessoas sabem sempre quando os filmo ou não. Uso uma pequena câmara como se fosse de vigilância, como se fosse uma detective. Realmente é o contrário do que é normal. Eu crio um dispositivo muito forte de maneira que me vejam a toda a hora. Eu observo, sim, mas não sou nada discreta. Eu vejo e conto a mim mesma uma história [do que se está a passar]. Há uma interação muito forte.

Mas quando os indivíduos veem a câmara, eles agem como atores, falam de forma diferente, e não de forma natural…

Sim, mas é isso que é interessante. Eu tento captar a verdade deles, não quero roubar nada, eu não quer estar lá discretamente, ou fazer crer que não estou lá. Isso soa a falso. O filme que quero fazer vai ser visto pelas pessoas. Por isso, primeiro é mais honesto ser assim, e segundo, e de forma bizarra, eu vejo que desta maneira eles são muito naturais e transmitem fortemente a verdade. Em todo o caso, é você que me pode dizer melhor, mas por mim é a melhor maneira [de os captar]. É mais animalesco, mais intuitivo, e o Cinema revela as pessoas como uma fotografia…

Isso leva-me a outra questão, de influências, sei que adora Fotografia, que ama o trabalho de Helen Levitt e Nan Goldin…

Sim, e adoro também o trabalho de Pedro Costa, e o Wanda [de Barbara Loden]…

O John Ford, o Rosselini…

Sim, o John Ford porque filma comunidades que atravessam os tempos, penso por exemplo em Os Dominadores (1949), o Cavalgada Heróica (1939), de pessoas que ultrapassam dificuldades incríveis, filmes que são profundamente humanistas…

E no documentário, tem alguém que a influenciou? [Frederick] Wiseman?

Sim, como toda a gente. Bem, é curioso, mas comecei a filmar antes de ver documentários. Via filmes de ficção e foram estes que me fizeram querer começar a filmar. Mas sim, gosto do Wiseman, do [John] van der Keuken. Mas não posso dizer que são uma influência. Não tenho um Mestre.

E o que é que a fez querer ser realizadora?

(longo suspiro e risos, como que a voltar atrás no tempo mentalmente)


Belinda

Como disse que tinha estudado Filosofia…

E Literatura…Acho que foi de observar, de tentar compreender melhor o mundo. De fazer pontes entre Universos que normalmente não se ligam. Nesse sentido, o filmar permitiu ligar-me melhor ao Mundo. De ensaiar, não de explicar, porque isso seria pretensioso….

O Pasolini, o Rosselini e os italianos, o neo-realismo, até o Visconti – com o A Terra Treme (1948), da revolta dos pescadores – interessam-me. Até em Portugal, vocês têm feito isso. Os belgas e os ingleses também. E falo disto porque em França nunca filmamos esse tipo de pessoas. Nós nunca filmamos os pobres, é muito, muito raro. E até o Bruno Dumont [o faz] de maneira distante. Não sei porquê, mas não existe uma tradição cinematográfica [francesa] de ficção [sobre os pobres]… Vemos filmes sobre pessoas nos centros à procura de trabalho, sem dinheiro, a terem de parar de se drogar, a interagir com os assistentes sociais. Como se víssemos isso tudo pelo olhar das pessoas filmadas. Isso não me interessa, quer dizer, é super importante que existam filmes como esses, mas não é isso que quero para mim.

Fez a trilogia das crianças, depois disso focou-se nos ciganos e agora os Yeniche. Interessa-lhe esses povos e temas mais à margem?

Sim, não me pergunte porquê, mas sim. Eu fiquei muito impressionada quando fiz um filme com a irmã da Belinda, na trilogia (das crianças), filmei-a com 10 anos, muito jovem e doce. Depois filmei a irmã, que tem 15 anos, e que batiza o seu filho… ela é muito amiga, mas é muito difícil o batismo por causa da família – eles são formidáveis, mas era complicado para eles. Nós compreendemos muitas coisas do mundo deles por causa disso. E infelizmente, esse momento do filme, é muito, muito duro para a criança.

Depois há uma cena à beira de um rio em que ela conhece um rapaz cigano e troca o número de telefone com ele. Quando eu filmei essa cena, no final dessa sequência, um miúdo cigano diz-me que vai ver os primos do outro lado da linha do comboio. Então fiz outro filme sobre o outro lado da linha. No filme seguinte eu disse que quero ver o que está acontecer ali.

E é verdade, eu fiquei impressionada porque os ciganos têm qualquer coisa de resistência…

Forbach for Ever

A Marie é também uma nómada e de certa maneira isso é uma forma diferente de comportamento em relação aos outros cineastas

Sim (risos). Nunca pensei em fazer isso quando comecei … Fiz um filme, e depois outro, e depois passei a linha do comboio e fiz outro de ciganos e agora outro. E quando as pessoas veem os meus filmes eu digo para não pensarem na ordem dos eventos, na cronologia. No Belinda, sim, usei a cronologia finalmente.

Mas voltando ainda à questão anterior, que já me estava a perder, eles são considerados à margem por nós. Eles têm uma família muito estruturada, tem o seu mundo à parte mas…

É um pouco como a sociedade os vê, à margem. Não viu um filme francês, À bras ouverts (De Braços Abertos), que conta a história de um político que abre as portas a toda a gente e é confrontado com uma família Romani que vai viver com eles? Os ciganos são retratados de forma estereotipada. São estereótipos atrás de estereótipos.

Não vi, como se chama mesmo?

À bras ouverts. É com o Christian Clavier.

Ah (suspiro, risos). [Os estereótipos] são ridículos. É horrível, não sei como é em Portugal, mas em França, e como estou aqui posso dizer o que quiser (risos), existe uma obsessão pelos sem terra. Não se admite o ser nómada, pois é um modo de vida demasiado diferente. Questiona-se o modelo económico, diz-se que eles podem ser perigosos. Vivemos baseados no capitalismo, na propriedade… Isso é francamente triste. Mas eu acho que eles resistem bem…

Não lhe interessa passar para o cinema de ficção?

Talvez. É curioso. Cada vez que acabo um filme digo que o próximo será de ficção… mas existe sempre algo como uma urgência para continuar a trabalhar como faço. Eu adoraria fazer um filme de ficção, mas com personagens verdadeiras. Não sei se é possível. Não sei se será interessante. Mas se o fizer será certamente com personagens reais, mas que eu possa desenvolver a história…

Viu o Kiss and Cry? É um híbrido [nessa linha]…

Sim, é um híbrido, mas o que queria não era bem isso. Eu queria… Eu não sei o que quero. (risos) Vou refletir sobre o que quero…

E já tem um novo projeto em marcha? Um novo documentário?

Os meus filmes são como um diário de bordo… Eu já pensei no assunto, mas não decidi ainda se quero fazer um documentário…ou um não documentário.

Na verdade é um filme, não sei como o catalogar. E agora ainda estou na fase de mostrar este filme. E uma coisa que é curiosa é que cada tipo de público vê [Belinda] de forma diferente. Quando estive em Berlim, pois o filme abriu a secção Panorama, os alemães viram a questão dos Yeniche, pensando «onde estão eles?». Em França, eles olham para o filme de uma forma diferente. Os portugueses ainda não sei, mas tenho a impressão que vão compreender a minha visão, o que já não será mau (risos). É muito interessante ver como as pessoas [de locais diferentes] veem o filme de maneira diferente.

E também contacta com estudantes de cinema [por causa do Belinda]…

Sim, é engraçado. Por exemplo, os estudantes na Arménia ficam estupefactos que isto exista em França e tinham uma imagem da França completamente diferente… Fazer filmes é como restituir um pouco a beleza ao mundo.