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«A Paixão de Van Gogh»: entrevista com os realizadores

Estreou na passada quinta-feira nos cinemas nacionais o filme A Paixão de Van Gogh,  um trabalho onde Dorota Kobiela (DK) e Hugh Welchman (HW), os realizadores, conjuntamente com mais de uma centena artistas, compuseram um trabalho com mais de 62 mil frames pintados a óleo que levaram 6 anos a concretizar.

Numa conversa com o C7nema, o duo falou do início do fascínio pela personagem de Van Gogh, as dificuldades e restrições que tiveram de lidar e da satisfação com que veem a reação do público ao resultado final. Ah! E falaram também dos seus próximos trabalhos, que passam por um filme em imagem real e uma nova animação de horror inspirada nos quadros de Goya.

Aqui ficam as suas palavras:

[para Dorota Kobiela] Como começou esta sua fascinação por Van Gogh? Antes ou depois de ter entrado na Universidade de Artes?

DK – A fascinação começou com os meus 16 anos. Era uma adolescente no museu de Van Gogh e aquilo foi para mim uma experiência. E as cartas? Bem. Depois, seguiu a minha tese de mestrado, com 22 anos (sim, sinto alguma vergonha por ter feito a minha tese tão tarde), que consistiu em traçar um paradoxo sobre escritores, pintores e filósofos, e de que forma as suas saúdes mentais influenciaram os seus trabalhos, ou o inverso, se a sua saúde mental inspirava os seus trabalhos. E por fim, novamente, as cartas.

Creio que foi dito numa entrevista vossa, que numa exposição em Londres, ficaram fascinado por os visitantes fazerem fila só para ver as cartas e não as pinturas.

HW – Sim, era impressionante o facto de esperarem mais de 3 horas para apenas vislumbrar as suas cartas dentro de caixas [risos]. Ao contrário de Dorota, que leu-as quando tinha uns 16 anos, eu comecei com 33 anos e isso foi depois dessa exposição, no qual questionava o porquê de serem tão “populares” e o porquê desta loucura, essa dita paixão por Van Gogh. E foi ao lê-las que me apercebi o porquê. A verdade é que após começar nunca mais quis parar. A minha fascinação pela personalidade dele expandiu-se para lá dos seus escritos. Li todas as biografias escritas possíveis, incluindo o importante livro de Julius Meier-Graefe, de 1921, na Alemanha. É uma história poderosa.   

Foi nessa altura que surgiu a ideia de avançar neste projeto, que inicialmente era para ser uma curta-metragem.

HW – Nessa altura a Dorota iria fazer uma curta e eu iria produzi-la, até porque apaixonei-me pela realizadora e não por Van Gogh [risos]. Essa foi a verdadeira razão pelo qual integrei o projeto [risos].

DK – Foi uma boa tática, porque eu lembro-me que tinha outro produtor e ele “roubou-lhe” o projeto.

HW – Sim, porque estava interessada na realizadora.[risos] Imagina, se continuasse com o mesmo produtor, a vida seria completamente diferente.

DK – Sim, mudar a vida das pessoas é a sua habilidade especial [risos].

A certo ponto tiveram uma campanha no Kickstarter. O que pensam dessas plataformas?

DK – Eu adoro-as. Eu penso que ela abrem tantos canais a pessoas que não conseguem financiamento de outra maneira. Recentemente falei com um amigo, que teve uma ideia incrível para um jogo de tabuleiro, e é lindo e inteligente, e ele falou com pessoas (…) porque fazer algo original é algo difícil de fazer (financiar), por isso no Kickstarter temos uma ideia original e a plataforma para as pessoas apoiarem o projeto. E isso é brilhante.

HW – Este filme sempre foi do público, que esteve sempre à frente da indústria em termos de fazerem as coisas acontecer. E a querer que essas coisas aconteçam. Primeiro foi o Kickstarter, e queríamos para uma coisa muito específica, porque já tínhamos dinheiro para o desenvolvimento da ideia dado pelo Instituto do Cinema da Polónia. Mas eles não nos deram dinheiro para treinar os pintores, e nós não tínhamos dinheiro para contratar animadores para este tipo de trabalho, até porque eles não existiam. Certamente não existiam 125 que pintassem no estilo do Vincent Van Gogh. Por isso, o Kickstarter foi muito útil pois conseguimos juntar dinheiro para recrutar e treinar a nossa força de trabalho.

Foi também através do Kickstarter que encontramos dois dos nossos investidores privados, pois não estávamos a ter sorte nenhuma com os financiadores da indústria do Cinema. E com o dinheiro destes investidores conseguimos começar a produção. E só quando entramos em produção conseguimos reunir algum material, que usamos em anúncios a procurar pintores.

Este anúncio tornou-se viral, porque o fã de um dos atores, o Douglas Booth, que tem uma grande base de fãs em Itália, colocou uma publicação no Facebook e ela foi partilhada e partilhada.

Eu não percebia muito de redes sociais na época, e nem sabia que aquilo se conseguia fazer. A verdade é que em 24 horas, 2 milhões de pessoas viram a publicação. Em 2 meses, 200 milhões de pessoas viram-na. Foi por causa desses 200 milhões de pessoas que uma série de coisas aconteceram: primeiro, encontramos financiamento; segundo, vendemos os direitos para todo o mundo, até agora para 135 países; terceiro, tivemos mais 4 mil pessoas a candidatarem-se para trabalhar connosco.

Então tiveram de fazer um casting para os pintores?

HW- Ao todos tivemos 5 mil pessoas que se inscreveram para trabalhar connosco.

DK – É interessante porque tivemos pessoas que trabalharam para criar algo que se tornou muito viral. E se isso acontece por acidente, tu agradeces muito.

HW- Tivemos 5 mil pessoas a se inscreverem, depois disso escolhemos 500 pessoas para fazer uma audição de pintura de animação, depois disso 125 foram escolhidos para serem treinados. Era um treino de 200 horas a ensinar-lhes a pintar no estilo de Van Gogh. E 100 horas a ensinar-lhes as bases do cinema de animação. Depois disso eles seguiram para a produção

E como escolheram os atores? Como foi o processo de casting?

DK Alguns escolhemos porque era importante que fossem semelhantes às personagens das pinturas.

HW – Sim, nós quisemos sempre que eles fossem parecidos aos retratos.

DK – Outros não tinham grandes marcas distintivas, como a Marguerite, quando a vemos por exemplo a tocar piano.

HW- Nos dois quadros que o Vincent fez dela não se vê a face dela.

DK – Acho que foi nisto que tive a visão da Saoirse (Ronan) no papel, e ela é uma atriz brilhante. Eu acompanho-a desde que ela é pequena, no Expiação (2007), no Hanna (2011).

HW – Tu sempre a quiseste para o papel da Marguerite.

DK – Sim, eu sempre a quis e quando ela aceitou, eu fiquei… feliz

HW – Depois houve outras escolhas como o Chris O’Dowd, que realmente queríamos ter….

DK – Outros ainda porque seria interessante vê-los pintados, e eles queriam-se ver pintados. Isso foi divertido.

HW – Eles gostaram do guião, por isso foi muito mais fácil encontrar atores, a equipa, etc, que o financiamento. A maioria das pessoas que se juntaram a nós entendiam o que estávamos a querer fazer e estavam todos muito excitados com o projeto.

Obviamente quando fomos falar com os financiadores foi mais difícil. Eles perguntavam que filme na mesma linha tinha sido feito e corrido muito, muito bem. Porque eles querem investir em algo seguro. E nós tínhamos de dizer que nunca ninguém tinha feito isto, e então diziam, ‘Ah, não. Não queremos investir.’.

Estão contentes com o resultado final? O filme vai estrear em mais de uma centena de territórios…

DK– Cento e trinta e cinco

Quando começaram a trabalhar no filme, alguma vez imaginaram que iam estrear em tantos países?

HW  – Não em tantos. Eu sabia que as pessoas iam gostar do filme, pois sabia que o Van Gogh tinha uma grande legião de seguidores, mas ficamos sempre surpreendidos com a forma como as pessoas têm reagido ao filme, de forma apaixonada. Temos pessoas depois dos visionamentos que vêm ter connosco…Que nos dizem, ‘ Nós seguimos este projeto há quatro anos, desde que ouvimos falar dele’. Isso é fantástico. Temos também pessoas que chegam até nós a chorar, muito emocionadas. Sinceramente, não esperava esse nível de envolvimento emocional.

O filme teve a sua estreia no Festival de Cinema de Animação de Annecy. É um festival importantíssimo para os filmes de animação…

Sim, foi fantástico….

Vocês consideram mesmo um filme de animação?

DK- Sim, claro. Há pessoas que falam num trabalho de rotoscopia, mas não é. É mesmo animação.

HW – É stop-motion. Um trabalho frame a frame. É isso que a animação é….

Já leram as críticas ao filme?

HW- Eu não leio, mas a Dorota lê.

DK- Li, mesmo no início do lançamento do filme. Depois parei.

Não gostam de ler essas críticas?

DK- Quando és um realizador, um artista, um escritor, não interessa qual, és a pessoa que toma certas decisões e caminhos, e essas são as tuas escolhas, e tens de viver com elas. As pessoas gostam dessas escolhas, ou não. Umas vezes eles criticam as tuas escolhas, outras vezes não…  Por isso não dou assim muita importância.

HW- Para mim os críticos são como a audiência. Estes lêem o que os críticos dizem e seguem-nos, se gostarem do crítico, e isso vai influenciar se vão ver o filme ou não. A nós não, porque nós fizemos o filme…

Sim, mas para o futuro, ou seja, a crítica muitas vezes “leva um filme para o futuro”…

HW- Pensas que os críticos vão me ensinar como filmar?… Pensas que o feedback de um crítico vai fazer de mim um melhor realizador?

DK- Às vezes acho que o feedback é bom. O que faço quando os leio – se é sobre algo que não envolva as minhas escolhas pessoais que tinha a certeza que queria tomar – é ver se isso ajuda-me e me faz pensar que podia ter feito de maneira diferente. Isso gosto, algo construtivo.

HW- Eu prefiro ver a reação do público. Eu fiz este filme para eles. Eu não fiz para os críticos, mas para as audiências. E eu todos dias vejo a reação do público.

DK- Depende, porque os críticos também constroem a reação da audiência.

HW- Sim, mas não foi para eles que fiz o filme.

KW- Sim, podemos ir ao Rotten Tomatoes e…

HW- … ficar muito contentes porque temos a melhor reação deste ano no site – desde que abrimos nos EUA há 4 semanas atrás.

Então sempre liga aos críticos?

HW – (risos) Estou a falar da reação da audiência. Dos críticos de topo temos 85% de aprovação e das audiências temos 94%. No geral da crítica temos 77% [entretanto este valor já subiu para 78%], o que é mais que eu esperava, por isso estou contente. Mas na verdade estou é maravilhado com os valores da audiência, porque isso sim era o meu sonho.

DK-  Eu respeito a crítica. Eu sei que faço escolhas e que as pessoas podem gostar delas ou não. Se alguém me diz algo de uma escolha na qual hesitei, isso dá-me algo, ajuda-me a fazer algo melhor no futuro.

E no futuro. Como acha que as audiências vão ver o filme…

HW- Eu penso que quando uma pessoa pensa em filmes sobre Van Gogh, falam do A Vida Apaixonada de Van Gogh (1956). Nos meus melhores sonhos, e se pensar daqui a 50 anos, penso que vão dizer o Loving Vincent. Mas veremos. [O primeiro] é com o Kirk Douglas, uma produção de Hollywood… mas quem sabe. O meu sonho é que digam A Paixão de Van Gogh, que vejam o nosso filme como O FILME sobre Van Gogh.


A Vida Apaixonada de Van Gogh (1956)

Há uma enorme influência do Cinema Noir nesta obra. Houve algum cineasta ou filme que vos influenciou para A Paixão de Van Gogh?

HW – Eu vi À Beira do Abismo (1946), sete ou oito vezes.

DK – A sério? Eu vi …

HW: Tu viste o Pagos a Dobrar (1944).

DK: Sim, eu vi porque é um clássico. Quer dizer, eu gosto das personagens de detetives relutantes…

HW – Eu adoro os diálogos desses filmes, são fantásticos.

DK – E a cinematografia deles, é algo que considero tão incrível.

HW – Por exemplo, a abertura do À Beira do Abismo é tão inteligente

DK – Mas por exemplo. No Citizen Kane temos aquela cena com o sinal de «Não Passar» (No Trespassing), e acho que isso é uma grande influência para construir uma personagem sem nunca saber realmente a verdade sobre ela… Houve outras influências. No início vimos muitos documentários…

HW – Sim, o A Verdade Contra Tudo (1988), do Errol Morris, foi uma das primeiras coisas que vimos um par de vezes

DK – Sim, adorei. Como ele consegue ter um documentário de investigação tão da velha escola e ao mesmo tempo tão emocional.

HW -E com uma banda-sonora fabulosa….

DK – Sim, é do Philip Glass

HW – Para além disso já vi vezes sem conta o final do Dreams of a Life (2011), da Carol Morley. É um documentário fabuloso…

DK- E por acaso nem tem grandes críticas

HW – A sério? É tão poderoso.

DK – Sim, mas há pessoas que não gostam porque não existem resoluções.

HW-  Sim, mas eu vi o final desse documentários muitas vezes…

DK – E é sempre poderoso.

E agora. Têm algum projeto em desenvolvimento?

DK- Eu tenho um filme que gostava muito de fazer, um filme em imagem real. Gostava de passar seis meses a fazer um filme em vez de seis anos. Eu gostei muito de trabalhar com os atores no Loving Vincent, foi fantástico. Não digo que gostei mais dessa parte do que do resto, mas é algo que me atrai.

Esse filme é sobre uma mulher, já falecida, muito conhecida na Polónia, durante a era comunista. É uma personagem feminina muito forte. É uma ideia, vamos ver onde culmina essa ideia.

HW – Bem, nós criamos esta técnica, e treinamos todas estas pessoas para o Loving Vincent.

DK –  E elas  agora semanalmente questionam o que vamos fazer a seguir.

HW – Por isso estamos a pensar fazer um filme de horror pintado inspirado nos últimos trabalhos de Goya, Não queremos contar a história dele, mas ser inspirado por ele para contar uma história. No Loving Vincent tínhamos muitas amarras – à sua história, aos seus quadros – até nas decisões da realização. Por exemplo, não podíamos mudar os enquadramentos dos seus quadros para contar a sua história, embutir a história dramática e os enquadramentos dos seus quadros e interligar com a parte histórica. A parte mais difícil foi mesmo escrever o guião para este filme… Por isso, dissemos para nós mesmos que no nosso próximo projeto teríamos de ter uma mais liberdade.

Voltando ao Loving Vincent, como conjugaram as pinturas do Van Gogh e a construção do guião. Como geriram esse processo?

DK – As pinturas definiam o local, o ambiente, o guarda-roupa…. Veja-se a Adeline Ravoux, nós sabemos que ela está sentada e vamos apresentá-la a partir dessa imagem, por isso influencia muito o guião.

HW – Sim, por exemplo, quando vemos pela primeira vez o Armand Roulin, ele tem de surgir com o verde em pano de fundo. Por isso temos de pensar como vamos colocar a personagem com um fundo verde. E o Milliet, a primeira vez que o vemos ele tem uma estrela sobre si. Como metemos uma estrela? E o Zuavo? Uma parte do fundo é verde e o resto é tijolo. Por isso ele só podia estar num sítio onde isso acontecesse. Por isso criamos a cena de luta e ele cai, ficando com a parede em tijolo e o verde no fundo… e tudo acontece à noite porque o Milliet tem de ter a estrela.

Temos de pensar em todas estas coisas quando escrevemos o guião. Outro exemplo, o carteiro Roulin tem no quadro um fundo amarelo, por isso colocamo-lo no Café à noite, porque o Café é amarelo…. Quando escrevemos o argumento criamos estes “Clusters” e depois ainda temos de juntar todos esses Clusters.

Por isso, no final, não existia assim muita liberdade na construção do guião…

HW – Sim, é verdade, mas às vezes as restrições obrigam-te a surgir com soluções que não tomarias se não tivesses esses constrangimentos. As vezes isso é bom. Mas penso que num próximo filme gostaríamos de ser mais livres, embora mais tarde possamos novamente trabalhar em algo tão restrito. Mas queremos agora mais liberdade. Queremos mudar a posição das câmaras, etc…

DK – Freedom (dito num jeito Braveheart) [risos]