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Cine Fiesta: Carlos Santos, o homem das mil caras

O nome de Carlos Santos não diz muito ao público português, mas em Espanha é já uma cara bem conhecida da televisão e do cinema, tendo conquistado a atenção geral quando recebeu este ano um prémio Goya pela sua participação em El hombre de mil caras.

No filme ele interpreta o papel de Luis Roldán, um antigo político do PSOE que dirigiu a Guardia Civil e se revelou um dos rostos mais preponderantes da luta contra a ETA. Porém, em 1993, um enorme escândalo de corrupção coloca-o em fuga, tornando-se assim o inimigo público número 1 para “nuestros hermanos”. 

O c7nem teve a oportunidade de falar com o ator sobre esse desempenho, mas também pela sua participação em Villaviciosa de al lado, uma comédia, que tal como o filme de Alberto Rodriguez (Grupo 7 [1], La Isla Mínima [2]) foi exibido na Cine Fiesta. 

Carlos, olhando agora para ti vemos a grande transformação por que passaste para El hombre de mil caras

Sim… (risos)

Como foi essa transformação, tiveste que ganhar peso…

Sim… (risos). Efetivamente eu sempre disse que se fizessem uma lista com 1000 atores que poderiam interpretar o Luís Roldan – que é uma personagem real que foi muito odiada na época em Espanha – acho que nem apareceria no último lugar (risos). Mas umas diretoras de casting bastante loucas pensaram em mim para fazê-lo.

Sei que inicialmente tinha até ido ao casting mas para desempenhar outra personagem…

Exato. Inicialmente chamaram-me para uma personagem secundária, muito interessante também. Porém, nesse mesmo dia voltei para casa, telefonaram-me à tarde e disseram: ‘queremos voltar a ver-te mas agora para o papel de Roldan’. Claro que pensei, como é possível? A personagem tem 50 anos, fisicamente é calvo e gordo. E o problema não era só fisicamente, era também a personalidade dela, a autoridade que era…


Carlos Santos em El hombre de mil caras

Viste muitos vídeos dele para te inspirar?

Muitíssimos. Pesquisei imenso na internet, procurei entrevistas, vídeos. É uma personagem tão distante de mim, fisicamente, mentalmente, na idade, e tantas outras coisas, que tive de o construir de fora para dentro. Primeiro o molde físico e só depois fui buscar-lhe a alma. Algo verdadeiro, não queria que fosse algo caricatural ou uma paródia.

E foi difícil essa transformação?

O primeiro passo foi engordar 10 ou 12 quilos. Colocaram uma nutricionista a tratar de mim para ganhar peso pouco a pouco. Mas foi difícil. Depois da primeira semana de dieta, a comer como um animal, fui à nutricionista e perguntei, ‘Então. Quantos quilos ganhei?’. Ela respondeu, ‘emagreceste um quilo’ (risos)… Foi difícil engordar. Depois, tiveram de trabalhar no meu cabelo, era uma hora e meia por dia só a maquilhar-me e pentear-me. Havia jornadas de trabalho de 10, 11 horas, e o cabelo começava a levantar. Então tinha de me desmaquilhar e maquilhar novamente. Tinha de fazer todo o processo novamente. Mas no final, o complicado foi entrar na mente da personagem.

Li que tiveste um ataque de pânico durante as filmagens, como aconteceu isso… e sei que o José Coronado te disse ‘bem vindo ao clube’…

Sim (risos). O José Coronado e o Eduard Fernández, os dois. E o Alberto Rodríguez, o realizador. Todos me disseram, ‘bem-vindo ao clube’. (risos)

(risos) Bem-vindo ao clube. Estás preparado….

Sim (risos). ‘Agora sim está preparado. Foi curioso. Ensaiamos as filmagens durante um mês. Foi muito longo o processo de ensaios e cada sequência foi ensaiada 15, 20 vezes. Não queríamos improvisos, estávamos muito preparados, a personagem estava criada.

No primeiro dia de filmagens em Paris, não no primeiro porque nesse dia só filmamos eu a sair de um carro e já está. No segundo dia era uma das sequências mais importantes do filme, quando me entregam – à beira do Sena – ao Paesa, e era uma sequência complicada, que levou dois dias, e nada…

Quando deixo o carro da produção e vou a caminhar até ao set, onde está o Alberto a preparar a cena, à medida que vou andando… (risos) começam as pernas a fraquejar, começa a faltar-me a respiração…

…e nem conseguias falar, não era?

Não. E quando entro no carro o Alberto começa a falar e eu – já nem me recordo bem – não dizia nada. Não saia nada. Nunca me tinha acontecido. De seguida, o Alberto percebeu, chamou-me à parte e perguntou que se passava. Deu-me um cigarro e disse, ‘Bem-vindo ao clube. Fica calmo, a personagem está feita, tudo está mais que ensaiado. Por isso não te preocupes‘. Foi algo que me apanhou de surpresa. Que nunca me tinha acontecido. Na verdade, nem sabia bem o que estava a acontecer. Pensei, ‘o que é isto?’. Mas a partir daí nunca mais tive problemas…

Numa entrevista disseste que o Alberto era muito meticuloso. Como funciona  isso. Ele ajuda os atores? Diz-te como a personagem deve ser ou dá liberdade para tu criares?

Vamos lá ver, como te disse estivemos um mês de ensaios. Todas as coisas que ele queria de nós foram se ajustando, obviamente nos ensaios. O Alberto dá muita liberdade, muitíssima, mas ao mesmo tempo é bastante preciso naquilo que quer. Mas dá-te a liberdade de criares tu a personagem, não vai ele criá-la. Mas quer sempre a precisão, não quer que vás noutro sentido.

A frase que o Alberto diz mais é ‘menos, menos’. Ele joga muito com as entrelinhas, com a inteligência do espectador, ele quer que este consiga ler as coisas subtilmente. E ele está sempre a dizer o ‘menos, menos’. Nós temos até uma piada que La Isla Mínima no início se chamava La Isla Máxima (risos). Foi aí que ele começou a dizer ‘menos, menos’, até que conseguiu chegar a La Isla Mínima. (risos)

[O Alberto] é um diretor com quem trabalhas totalmente confiante, pois não vai deixar que eu me engane. Isso para mim, como ator, dá-me uma tranquilidade absoluta.

E qual foi a sensação de ganhar o Goya?

É algo para o qual não estás preparado. Ninguém que se dedica a isto consegue imaginar que um dia vai ganhar um Goya, que como sabes é o principal prémio do cinema espanhol. Também há uma coisa que o Alberto me disse, um dia antes da gala. ‘Não te preocupes. Fica calmo, não se passa nada. Os prémios não são para nós. O teu prémio foi ter feito o filme, de teres feito um trabalho que te possas orgulhar’. E efetivamente esse é o prémio. O outro prémio é para a família, para os amigos, para os colegas, para a tua namorada…


Carlos Santos conquista o Goya de Melhor Ator em Estreia

Sim, mas gostas do reconhecimento?

Claro, mas o que pensas é que já estás nomeado e que o Alberto já conquistou 10 Goyas [embora os filmes não ganhem os prémios, os atores que trabalham com ele ganham]. Antes das rodagens, quando foi anunciado que eu ia desempenhar o papel de Roldan, muitos disseram que eu ia ganhar o Goya. E ainda nem sequer tínhamos começado a filmar e já sentes a pressão. ‘Tenho que atuar muito bem, muito bem’. Por isso mesmo, quando te nomeiam e depois dizem o teu nome, só pensas ‘felizmente’ ganhei, pois imagina a deceção para a minha família, os meus amigos, para toda a gente que tinha claro na cabeça que eu ia ganhar.

Neste momento o Goya é uma estatueta que está em minha casa e que de vez em quando limpo o pó. Pouco mais. É uma satisfação, claro, mas para mim o prémio é por exemplo estar aqui em Lisboa a apresentar o El hombre de mil caras, um trabalho que me orgulha muito, não só por mim, mas por ter pertencido a este filme e de ter trabalhado com este génio que é o Alberto Rodriguez.

Tu tiveste um papel na TV espanhola [Los hombres de Paco] que fez com que toda a gente na rua te chame pelo nome da personagem que desempenhavas [Povedilla]. Mudou alguma coisa, agora que ganhaste o Goya? As pessoas te tratam por Roldan?

(Risos) Não. Continuam-me a chamar Povedilla. Bem, agora estou a fazer outra série em Espanha que vai no quarto episódio e então agora começaram a chamar-me outra coisa… A televisão é um meio diferente. Não sei quantas pessoas viram o filme, mas numa série temos 3 ou 4 milhões de pessoas que a vêem todas as semanas. O Los hombres de Paco teve no ar 5 anos, foram 117 episódios, com 4 milhões de pessoas de cada vez. E agora estou a fazer isto:

[Santos pega no telemóvel e mostra-nos a imagem]


Carlos Santos em Ella es tu padre (TV)

(risos) Ok. Outra grande transformação? (risos)

Sim, outra grande transformação. Nesta série [Ella es tu padre] sou a Avelina, por isso agora quando me abordam também dizem, ‘Avelina. Tu és a Avelina’. (risos). O Los hombres de Paco tornou-se em Espanha uma série mítica. E mesmo tendo terminado em 2010, as pessoas continuam a dizer que sou o Povedilla. Acho que, faça o que faça, vou ser sempre oPovedilla. E fico também orgulhoso por isso, porque as pessoas gostaram da série e das personagens. Que mais se pode pedir?

Que gostas mais de fazer? Cinema, TV? Teatro?

Se não tivesso feito as coisas que fiz na TV, não conseguia fazer no cinema o que faço hoje em dia. Mas não por ser mais ou menos popular, mas pelo treino que a televisão te dá. A velocidade de aprender, de decorar um guião, de trabalhar rápido em qualquer situação nas filmagens (…) o treino que a televisão me deu é a base daquilo que sou como ator. Eu descobri tudo o que posso fazer ou não fazer como ator durante cinco anos com esta personagem, e muitas outras. É como fazer um filme, ou 117 filmes de Los hombres de Paco. 117 argumentos e sempre situações diferentes dá-te como ator um arcaboiço muito potente para enfrentar uma personagem como esta de El hombre de mil caras…..

Sim, tu trabalhaste também em Villaviciosa de al lado, uma comédia. Tu também és um homem de mil caras…

(risos) Sim, Los hombres de Paco era uma comédia e sou principalmente conhecido pelas comédias. Por isso surpreendeu muita gente eu assumir o papel de Luis Roldán, uma personagem que toda a gente conhece e que ninguém imaginava que podia ser eu a interpretá-lo. Foi uma escolha surpreendente por parte do Alberto Rodriguez e das diretoras de casting, porque essencialmente eu sou conhecido mais por coisas como o Villaviciosa, do que por filmes como El hombre de mil caras.


Carlos Santos em Villaviciosa de al lado

E fizeste também recentemente o La madriguera

Sim, é um filme muito pequeno. Foi uma pequena colaboração, o realizador chamou-me e eu tinha muitos amigos lá. Foi quase um cameo. É um filme que funciona muito bem em festivais internacionais, que ganhou alguns prémios, mas não tem a distribuição de uma Warner [como El Hombre de Mil Caras e Villaviciosa tiveram].

Tens novos projetos no cinema?

Não quero falar nisso (risos). Há coisas com gente muito interessante, mas tenho o compromisso com a série. Não sabemos se vamos gravar mais episódios. (…) Estamos num momento de ver como corre a série e como evoluem estas propostas de cinema.

Depois do Goya e deste papel, tens mais realizadores interessados em trabalhar contigo?

(risos) Sim. Efetivamente há propostas porque depois disso estás numa montra. E as pessoas descobrem talentos que não conheciam em ti, por isso querem trabalhar contigo. É verdade que me meti nesta série ainda antes de filmar El hombre de mil caras, e não pude trabalhar em muitos projetos [depois da consagração] porque já estava imerso na séria. Mas sim, agora que tenho um pouco mais de tempo vou pensar nesses projetos para o cinema.

Sabes que o importante nesta profissão é que o telefone toque, seja para uma peça de teatro, um filme ou uma série. Poder viver daquilo que gostamos – e sei que é uma daquelas frases feitas – é o que queremos. Há muitíssimos atores aqui, em Madrid, em Los Angeles, em Londres, que trabalham em bares porque não podem viver da atuação. Poder viver daquilo que gostamos é maravilhoso.

Há algum realizador com quem gostarias de trabalhar?

Muitos e espanhóis. Com [J. A.] Bayona, com [Alejandro] Amenábar, com o Daniel Sánchez Arévalo. Há muitos. Amanhã vem cá um realizador à mostra, o Fernando González Molina, com o qual colaborei na minha primeira longa metragem e no Los hombres de Paco, e com o qual nunca mais trabalhei. Há muito talento em Espanha e agora o cinema espanhol está a abrir-se muito mais aos filmes de género… Estilo, antigamente não se podia fazer um thriller, mas agora fazem-se coisas espetaculares como No habrá paz para los malvados, ou La Caja 507…

Ou o Que Dios nos Perdone

Sim, do Rodrigo Sorogoyen, é fantástico. Abriu-se um pouco a mente em Espanha. Antigamente, a linha era muito mais óbvia. Ou havia a comédia, comédia do tipo A Rainha de Espanha, filmes de uma estirpe na história do nosso cinema que nasceram com o [Luis García] Berlanga, ou com o Juan Antonio Bardem. Agora, parece que o thriller e outro tipo de géneros, como o terror, ganharam espaço. O Paco Plaza fez agora um filme, o Verónica. É fabuloso, creio que está a arrasar. Há muitíssima gente com talento. Antes era mais limitado, existiam 3 ou 4 realizadores. Hoje? Paco Plaza, Koldo Serra, Bayona, Daniel Sánchez Arévalo, Rodrigo Sorogoyen, o Raúl Arévalo, agora…

Há uma nova geração…

Há e quero trabalhar com todos. Aceito qualquer projeto destes loucos porque têm muito talento.