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Entrevista com Hugo Prata, o realizador de «Elis»

O C7nema aproveitou a presença de Hugo Prata no FESTin para efectuar algumas perguntas ao realizador de “Elis”, uma obra de pendor biográfico sobre Elis Regina. Ao longo da entrevista foram abordados assuntos como a selecção das canções que integram o filme, a preparação de Andreia Horta para o papel, as dinâmicas entre os elementos do elenco, a necessidade de colocar o público brasileiro a contactar com as suas origens, o grande fulgor do cinema canarinho, entre outros assuntos.

O FESTin tem procurado valorizar o cinema em língua portuguesa e trazer para Portugal alguns bons exemplares do cinema brasileiro. Já conhecia o festival? Quais são as primeiras impressões que tem retirado do festival?

Fiquei muito honrado quando recebi o convite da Adriana Niemeyer. Ouço falar sempre muito bem do festival. É uma honra ser convidado para ter o filme de encerramento. Vamos encerrar o festival a 8 de março, o Dia Internacional da Mulher, acho que é uma homenagem à altura da Elis Regina.

Num determinado momento de “Elis”, encontramos a personagem interpretada por Andreia Horta a criticar a política das editoras e a salientar que “(…)  quando você vai tentar novos compositores, as gravadoras não deixam, não querem experimentar (…)”. O Hugo Prata tem em “Elis” a sua primeira longa-metragem como realizador. Embora o filme aborde épocas diferentes e meios distintos, também sentiu essas dificuldades para conseguir realizar a sua primeira longa-metragem?

Sim e não. É um facto que é muito difícil conseguir financiar qualquer longa-metragem tanto no Brasil como em Portugal ou até nos EUA. É uma pipa de massa. Nesse aspeto é sempre muito difícil. É o meu primeiro filme, é verdade, então as pessoas em geral não conheciam o meu trabalho em longas-metragens, mas ao mesmo tempo tinha a Elis Regina como um nome muito conhecido, muito carismático no Brasil. Diria que foi um processo difícil, mas normal.

A Elis Regina é um furacão que continua a mexer com as emoções de imensas pessoas, apesar da sua morte bastante precoce. O que o atraiu na figura de Elis Regina para realizar uma longa-metragem sobre este ícone da música brasileira?

As suas características enquanto personagem: a sua força, o seu arco dramático, o seu carisma, aquilo que ela representava, o temperamento difícil (a alcunha de “Pimentinha”), ser controversa. Isso é sempre muito rico numa personagem. Ela lutou muito em anos nos quais era preciso muita força, eram os anos de ditadura no Brasil. Esse aspecto emocional e a vertente musical interessaram-me muito. Ela traz uma bagagem cultural muito forte no Brasil, tem músicas muito importantes para o período.

Andreia Horta e Hugo Prata na 8ª edição do FESTin

Pegando na deixa da música. As músicas são uma componente muito relevante de “Elis”. Qual foi o critério seguido para seleccionar as canções que integram o enredo do filme?

Ah, isso foi uma das partes difíceis. As músicas tinham que entrar, levar a história para a frente e fazerem sentido no guião. Não queria que fossem apenas homenagens, algo que seria fácil, já que a Elis Regina tem muitas músicas importantes, que toda a gente iria gostar de ver. Tentámos nos cingir às canções que faziam sentido naquele momento da dramaturgia e levassem a dramaturgia para a frente. Algumas canções importantes ficaram de fora, mas é o preço a pagar na hora de fazer dramaturgia.

O argumento de “Elis” foi escrito pelo Hugo Prata, Vera Egito e Luiz Bolognesi, todos com experiência em realização. O que cada um dos elementos mencionados trouxe ao argumento do filme?

O Luiz Bolognesi fez grande parte dele (argumento). Na hora de fechar, de fazer o último tratamento, o Luís já estava bastante ocupado. Após ter conversado com a Vera Egito e o Heitor Dahlia, que era o marido dela nessa altura, senti a necessidade de mexer em alguns pontos. Não tinha mais a disponibilidade do Luiz Bolognesi, que nessa época já estava a trabalhar noutro guião. Convidei a Vera Egito para fazer o último tratamento. Foi importante porque a Vera Egito é uma mulher e eu queria um olhar feminino para fazer o último verniz do argumento. Acho importante essa visão feminina. “Elis” é um filme sobre uma mulher, sobre “A” mulher.

“Elis” aborda diversos períodos importantes da vida de Elis Regina, com muitos episódios a entroncarem em alguns acontecimentos históricos. Qual foi o maior desafio para conseguir a atribuir a devida importância a cada um dos episódios retratados? 

Foi o mesmo critério da escolha das canções e dos personagens. Não dava para abraçar trinta e seis anos em duas horas. A nossa intenção foi mostrar o arco dramático da Elis, nomeadamente, o que a levou, apesar de ser uma pessoa tão forte e guerreira, a se fragilizar no fim da vida ao ponto de se envolver com as drogas e acabar por morrer tão precocemente. Eu queria entender quais foram as coisas que estão por trás do mito, o que atormentou aquela mulher. Essa era a nossa escolha. Após isso estar decidido, você tem de seleccionar os eventos que levam a história para a frente. Não dá para parar e fazer uma homenagem com vários eventos e outros personagens da vida dela. Você tem de se cingir aonde você está indo e seleccionar os factos, as canções e os personagens que te levem lá. A parte mais difícil do argumento foi tudo aquilo de que tivemos de abrir mão.

A Andreia Horta conta com uma interpretação magnética e convincente como Elis Regina, conseguindo tornar naturais os gestos e as expressões que imprime à protagonista. Como surgiu a entrada da Andreia Horta no elenco de “Elis”? Aproveito ainda para perguntar se pode falar um pouco do processo que conduziu a esta transformação da atriz?

A Andreia Horta sempre teve dentro dela a intenção de fazer Elis, desde que decidiu ser actriz, ainda na adolescência. É uma atriz com uma grande força dramática. Esse era o nosso principal quesito para a nossa escolha. Antes de mais nada, queria uma actriz que tivesse muita força dramática, que acho uma das características mais importantes da Elis quer no palco, quer na vida pessoal. Ela tinha muita garra, imensa gana. Queria uma atriz com esse punch. A Andreia tem essa característica. Uma vez tudo decidido, a Andreia pediu uma imensa preparação, algo que nós conseguimos oferecer. Ela teve um coach de voz cantada, um coach de voz falada e um coach de corpo. Ela trabalhou três meses com esses três professores, de segunda a sexta, das 9h às 5h, trabalhando como qualquer operário, sem dispersar, sem outros compromissos. Foi de uma dedicação muito intensa. Nós também conseguimos oferecer isso para ela. É uma coisa cara ter professores, um lugar para ensaiar, ter tempo. Isso foi no Rio.

Posteriormente a Andreia foi para São Paulo, onde se encontrava a base da produção, tendo ficado por lá mais dois meses. Depois dessa longa preparação para falar, cantar e gesticular como Elis, nós caímos no texto e fomos chamando actor por actor, desde o intérprete do pai de Elis, passando pelo marido, o outro esposo, o Lennie e tudo o mais. Pudemos ensaiar todo o texto, todo o filme. Isso foi importante porque permitiu que eles colaborassem muito. Actor é sempre muito inquieto. A Andreia é muito inquieta e questionadora. O Júlio Andrade também. Todo o mundo questionou. Ensaiarmos com calma, num set de filmagens, permitiu que os actores se envolvessem bastante com os seus personagens, com as suas falas e as suas características. Quando chegou a hora de filmar, eu só deixava eles irem. Já tínhamos discutido tudo. No set não dá tempo para ter discussões de visão sobre uma cena. Se há um conflito temos de parar as filmagens, temos de nos entender com o actor e é caro. Então conseguimos fazer isso antes e no set deixei-os o mais solto possível e acho que isso imprimiu uma naturalidade muito grande. 

Essa era exactamente uma das perguntas que lhe ia fazer, nomeadamente, como foram trabalhadas as dinâmicas entre a Andreia Horta, o Gustavo Machado, o Caco Ciocler e o Júlio Andrade. É que a Andreia Horta conta com dinâmicas muito convincentes quer com Gustavo Machado (Ronaldo Bôscoli), quer com Caco Ciocler (César Camargo Mariano), quer com Júlio Andrade (Lennie Dale)…

Nós atribuímos prioridade à escolha de atores inteligentes, com uma formação de dramaturgia muito boa. Conversámos sempre muito com cada um deles, separadamente, na fase de selecção. Na hora dos ensaios ocorreu muita troca. A relação da Elis com o Ronaldo sempre foi de conflito, então trabalhámos imenso o conflito no interior da relação deles. Com o Caco já existia uma harmonia maior. A relação do Lennie com a Elis era de intimidade, de harmonia. Então tínhamos muitos exercícios de intimidade, antes de cairmos no texto. Eu diria que foi um grande trabalho a nível de preparação quer da nossa parte, quer da parte deles. É algo que custa caro: custa tempo e dinheiro. Na produção existe uma decisão a ser tomada. Dei prioridade a investir nisso. Todos os que precisaram de coach, tiveram coach. O Caco teve um coach de piano. O Júlio tinha um coach de corpo. Todos investiram muito em preparação. Na hora de filmar já estava tudo à flor da pele.

O cinema brasileiro tem contado com um filão interessante de filmes de ficção ou documentários sobre figuras marcantes do mundo da música. A certa altura do filme, encontramos Ronaldo Bôscoli a salientar “esse programa precisa de uma coisa que fale com as nossas raízes, que comunique, que todo o Mundo entenda”. Podemos entroncar estes filmes sobre músicos com essa necessidade de colocar o público brasileiro a contactar de perto com as suas raízes?

Sim, era uma das minhas intenções, inclusive na hora de seleccionar o assunto do filme. Acho importante repassarmos a nossa História recente a limpo. O Brasil ainda faz pouco isso. Os americanos fazem isso muito bem. Você vê “La La Land”, é a história do Jazz, de Hollywood, do casting. Eles estão o tempo todo a processar a sua História. Acho isso importante para a formação de uma cultura. Quis fazer isso, quis trazer um ícone recente que é Elis Regina, bem como a nossa História recente, todo aquele período de Ditadura Militar. Se você não faz isso as novas gerações vão esquecer. Existiu uma intenção de reprocessar isso.

O Golpe de Estado de 1964, no Brasil, é um dos vários episódios históricos que influenciam a vida da protagonista. Tal como “Elis”, também “O Outro Lado do Paraíso”, “Quase Memória” e “BR 716” abordam ou mencionam o Golpe de Estado de 1964. Embora algumas das obras mencionadas tenham sido desenvolvidas antes do Impeachment, podemos inferir que existe um “diálogo” entre a Sétima Arte e a situação atual do Brasil?

HP: É uma coincidência. Comecei esse projeto há cinco anos, nem imaginava que ia acontecer tudo aquilo que aconteceu no ano passado. Acho que é apenas a História a repetir-se. Assim como você citou na primeira pergunta, muitas das coisas que a Elis diz nessa entrevista ainda soam muito actuais. Nós percebemos isso nos ensaios, na hora de filmar. O que ela fala sobre a indústria fonográfica ainda é actual. Acho que hoje em dia ainda é mais grave. Na época as ofertas ainda eram culturalmente mais ricas. Hoje em dia está tudo muito mais banalizado. Acho que são apenas tristes coincidências.

A edição de 2017 da Berlinale terminou recentemente. No entanto, ficou o registo de uma participação brasileira muito forte quer em quantidade, quer em qualidade. Podemos dizer que, apesar da crise política e económica, o cinema brasileiro está a conhecer uma fase de grande fulgor? Aproveito ainda para perguntar se esse apelo que os filmes brasileiros despertam nos programadores dos festivais também se traduz na distribuição e no gosto do público?

Sim, o cinema brasileiro está num momento muito saudável. Estamos numa crise imensa, o país está num momento económico muito difícil, porém o cinema está muito saudável. Acho que o trabalho que a Ancine tem vindo a desenvolver nos últimos quinze anos e o Fundo do Setor Audiovisual, propiciaram uma maneira de financiamento muito saudável, para além de que a quota nas telas de televisão também oxigenou muito o mercado. Nós estamos a viver um momento muito peculiar. Embora exista uma crise económica no país, o cinema não está a viver essa crise, muito pelo contrário. No ano passado produzimos (Brasil) cento e quarenta e três filmes, dá mais do que uma obra cinematográfica a cada três dias. Veja-se o caso de Berlim, que você mencionou. O festival contou com filmes (brasileiros) muito diferentes, de alguns de realizadores que eu nem conhecia. Eu conhecia a Daniela Thomas, a Laís Bodanzky e o Marcelo Gomes. Acho isso muito saudável. É diferente.

O gosto do público ainda anda bastante diferente disso. O público ainda está muito atrás de diversão. Nós estamos a viver um momento muito saudável das comédias. Existem comédias muito populares por lá. Eu não acho ruim. Tem muita gente que atira pedras e critica, mas acho que se um povo tão sofrido como o nosso vai ao cinema e morre de rir com o Paulo Gustavo é algo válido, é saudável. As comédias têm o seu valor, que é divertir o público e ao mesmo tempo nós estamos a procurar levar um pouco mais de conteúdo, apesar de ser um trabalho de formiguinha.