Quinta-feira, 28 Março

Pedro Pinho: “Não gosto da ideia da política dos autores. O cinema é um trabalho coletivo.”

A Fábrica de Nada é o mais recente projeto realizado por Pedro Pinho (A Cidade e as Trocas, Um Fim do Mundo). Passado numa fábrica de elevadores onde um grupo de operários organiza um sistema de autogestão, insatisfeitos com a sua direção, a obra tem arrecadado grande aclamação por parte da imprensa internacional, tendo mesmo conquistado o prémio FIPRESCI na última edição do Festival de Cannes.

O C7nema teve o privilégio de entrevistar o realizador numa conversa que vai do aspeto político do filme ao método de trabalho com atores não-profissionais, passando por questões como a validade da política dos autores ou o desaparecimento da película em prol do digital nas produções fílmicas.

Qual a sua reação à receção do filme em Cannes?

A receção da crítica em Cannes foi absolutamente surpreendente. Logo a partir do momento em que o filme estreou começou a sair uma chuva de críticas muito positivas, sobretudo da América Latina e de Espanha, mas também França, Itália e vários outros sítios. Começámos a ver as leituras sobre o filme, leituras que nem tínhamos feito anteriormente. E depois houve o ranking dos críticos onde o filme foi considerado o melhor do Festival. Filme de cinema, isto é*. Foi incrível, superou de longe as nossas expetativas.

Uma das reações em Cannes, talvez pelo contexto político do filme, foi acusações de que o filme se tratava de propaganda esquerdista.

Por acaso não li essas reações, felizmente. Mas o filme não é nem propaganda nem de esquerda. Há obviamente quem tenha várias leituras sobre o assunto e essa é uma delas. Há muitas outras pessoas que têm outra visão e baseio-me mais nessas otimistas do que nas outras.

Até porque na 2ª metade o filme entra justamente nessa vertente mais política e decide discutir o que aconteceu na 1ª, em busca das suas fragilidades.

Eu não vejo o mundo baseado nessa dicotomia esquerda/direita. Isso é um sistema de leitura que nos conduz a um equívoco. Mas claro que sou mais próximo de pessoas e ideias de esquerda. Agora o facto de o filme convocar uma série de ideias políticas esquerdistas, não quer dizer que a tese do filme seja essa. Procura pensar sobre uma série de assuntos e sobre um contexto político, social e histórico que estamos a viver e uma possibilidade de resposta ao mesmo. E essa possibilidade, obviamente, é de esquerda porque as outras, como o Trump ou o nazismo, nem me interessa pensar sobre elas. O que o filme procura fazer é uma reflexão sobre um conjunto de temas fundamentais nos tempos que estamos a viver. Acho até que algumas ideias apresentadas são antagónicas, negam-se e anulam-se mutuamente. Acho que quando chegamos ao fim do filme não estamos convencidos mas, ao invés, cheios de dúvidas.

Ou seja, apesar de não apontar para nenhum dos lados, é um filme político. Porque a neutralidade política é, em si, um ato político.

Claro.

Um dos momentos mais memoráveis do filme é a cena musical. Sendo o musical visto como um género escapista, todo aquele foco musical é, de certa forma, um escape?

Isso do musical ser um género escapista é só verdade parcialmente. Desde os anos 70 que há um conjunto de musicais operários passados em fábricas.

Como o Tout va Bien?

Ou o Dancer in the Dark. Esses filmes juntam duas realidades quase paradoxais, cantar para esquecer e um certo realismo da vida e do universo operário. Aceitámos esse desafio, fazer um musical à nossa escala e ao nosso jeito.

 Tout Va Bien (1972), Jean-Luc Godard

Começou por ser um projeto musical realizado pelo Jorge de Silva Melo. Como se passou esta transição de uma obra exclusivamente musical para um filme com uma parte docufictícia?

A mim não me interessava que as pessoas estivessem sempre a cantar, mas agradou-me a ideia de um musical porque é um desafio enorme. O que acabou por acontecer quando repensámos o filme foi esta ideia de nos introduzirmos nele, um certo olhar exterior ao âmbito estritamente narrativo da história dos operários na construção dramática. Acabámos com esta coisa um bocado estranha que é um filme feito por camadas, onde numa primeira há uma história simples de uma fábrica que fecha e depois há a entrada de um intruso [Danièle Incalcaterra] que é um olhar muito paralelo ao nosso, de um realizador que interfere na realidade operária e a perturba. Isso permitiu introduzir-nos novas camadas de reflexão que achámos necessárias, a realidade dura dos operários que ficam na miséria, sem trabalho ou que têm ataques cardíacos e se suicidam. E por ser uma realidade tão dura achámos que devíamos refletir sobre ela.

Foi por isso que quis concentrar a ação numa fábrica de elevadores? Esta simbologia de várias camadas/andares?

Foi um acaso absoluto. A fábrica que encontrámos (Otis), coincidentemente, estava em autogestão. Mas não houve a intencionalidade dessa transição.

Esta questão da docuficção, vai buscar pessoas que viveram aquela situação de perto e transforma-as em personagens. Onde está a linha que separa a personagem da pessoa?

Não há uma fronteira muito nítida e é essa a intenção. São personagens a partir do momento em que fazem parte da matéria fílmica. Mas são construídas com os carácteres das vidas das pessoas. Não é como a água e o azeite, a ideia é que as coisas se misturem e que a personagem absorva a identidade do sujeito para que se produza um efeito de verdade e uma sensação de relação com a realidade que me interessa trabalhar.

A 1ª parte parece muito orgânica, as pessoas engasgam-se, corrigem-se e isso traz um lado muito realista. Isto estava no guião, foi trabalhado com eles ou foi improvisado?

Nós tínhamos tudo escrito. Mas é impossível dar uma lista de diálogos a 30 atores e esperar que a coisa surja com atropelos como na vida. Procuramos criar uma situação, fazemos um ensaio que seja qualquer coisa semelhante e trabalhamos dinâmicas entre os atores. Só no dia da rodagem é que eles sabem o texto. E a situação é lançada e procura-se que vá fervendo até chegar a um ponto de ebulição. E nesse momento introduzimos diálogos escritos que fazem avançar dramaticamente a cena. Alguém sussurra ao ouvido do ator o que ele deve dizer, o que faz com que o grupo reaja em surpresa e se torne tudo mais orgânico.

A tensão entre eles parece muito genuína. Perguntava-lhe se provocava atritos entre os seus atores para obtê-la.

Não havia conflitos reais entre eles porque acho que todos estavam a gostar da experiência e a divertirem-se, mas muitas vezes nas cenas de conflito a tensão tinha que aquecer até um ponto em que fosse credível. Para isso, eu e o assistente de realização iniciávamos um confronto físico com os atores. E isso demora 15 minutos de histeria e como estávamos a filmar em película só o começávamos a fazer quando estava tudo exaltado.

Falemos agora nessa questão da película. Cada vez mais em Portugal, por questões financeiras, opta-se pelo digital, mas o seu filme, mesmo apesar da sua duração de 3 horas, não foi por essa via.

Até filmámos mais do que isso porque estamos a lidar com atores não-profissionais e é um processo mais demorado. Para mim a película é muito importante, é uma materialidade totalmente diferente. Não tem a ver só com a metodologia e das diferenças que acarreta face ao digital, mas também com a materialidade própria. Não é o mesmo pintar em óleo ou em aguarela. Há uma materialidade no cinema e ela, na minha opinião, faz parte do objeto, da escolha estética.

Desconsidera totalmente filmar em digital?

Não, cada vez se torna mais difícil filmar em película, já nem há laboratórios cá e eu acho que o digital está a evoluir, cada vez mais próximo da película, apesar de não ser totalmente igual. Em França entrei numa sala de cinema e projetaram um filme da Claire Denis em 35 mm. Aquilo é um prazer que já não estamos habituados sequer a ter, apesar de ser belíssima a projeção. O olhar das pessoas que estão a ser formadas e mesmo o meu estão a ficar habituados a uma outra materialidade.

Há pouco falávamos da personagem do Danièle Incalcaterra. Não me parece que tenha sido acidental a escolha de um realizador de um filme chamado Fábrica Sin Patrón para interpretá-la.

O Danièle tinha sido professor num atelier aqui da Gulbenkian e a Leonor Noivo, o Tiago Hespanha e a Luísa Homem [coargumentistas do filme] foram alunos dele. E quando estávamos a escrever o filme pensámos em quem seria ideal encarnar esta personagem. Foi uma ideia que nos veio rapidamente. É um cineasta que fez um documentário sobre uma fábrica em autogestão e houve uma data de conexões que nos mostraram que fazia sentido ser ele. Claro que isso teve implicações na narrativa porque a dada altura vem uma encomenda da Argentina que corresponde a esta relação dele com essa fábrica.

Alguns críticos têm interpretado que se trata de um alter-ego seu…

Essa é uma questão um pouco abusiva. É um realizador de cinema de outra geração e que tem um papel que eu nunca faria. A personagem do Danièle é uma espécie de encarnação do nosso gesto, mas não me identifico nada com aquela figura. Como já disse, queríamos uma espécie de tridimensionalidade no filme, criar um movimento perpendicular do nosso olhar e, para isso, criámos a personagem dele.

O filme está a ser promovido como um “filme coletivo” e não como “um filme de Pedro Pinho”. Este “coletivo” é uma alusão ao corporativismo do projeto?

O “filme coletivo” tem a ver com o facto de como a imprensa se apropriou do facto de dizermos “um filme de x, x, x e realizado por Pedro Pinho”. Nunca falámos em coletivo. Mas a forma como o projeto nasceu e abraçámos na Terratreme depois do Silva Melo ter deixado de poder realizar foi absolutamente coletiva, sim. Decidimos que eu iria realizar, isto é, ter a última voz nas opções de rodagem e de montagem, mas que todos iríamos pensar o filme desde o início. Daí esta autoria coletiva. Não acho muito certo no cinema o realizador assumir a autoria individual do filme.

Não é a favor da política dos autores?

Não. Não gosto dessa ideia. O cinema é um trabalho coletivo. Muito mais num tipo de registo em que a escrita dos diálogos é muito feita na rodagem. É abusivo reivindicares para ti algo produzido a partir de um confronto entre várias pessoas. Não tenho problemas em assumir a realização porque fui eu que decidi as ideias do enquadramento, mas isso não é tudo. O pensamento sobre o filme nasceu de um processo que envolveu várias pessoas.

Um dos aspetos mais interessantes no seu filme é o filmar sempre à altura dos homens e só se baixar quando as personagens se sentam. Isto é o princípio Hawksiano: filmar a ação à altura dos olhos. Foi para lhes dar um pouco mais de dignidade e salientar a camaradagem entre eles que tomou esta opção?

Eu nem sequer concebo muito bem outra forma de realizar. Mas isso se calhar tem a ver com a forma como aprendi a fazer cinema, com essa relação de horizontalidade para com as pessoas. Não penso muito nisso, só na montagem. No primeiro filme que fiz tive grandes discussões com a montadora porque ela achava que se devia usar uma cena em que pessoas estavam a comer no chão, filmada em picado. E eu e o corealizador não aceitámos e tivemos uma discussão tão grande que acabou por implicar uma mudança de montador.

Um dos grandes momentos do seu filme é aquele em que a personagem Zé [interpretada por José Smith Vargas] vai buscar o filho à escola e a câmara filma-os a descerem a rua para depois fazer uma panorâmica vertical e mostrar a fábrica, como se estivesse a dizer que a base de uma família, de uma companhia, de uma fábrica é o amor.

A fábrica que aparece nesse plano não é a do filme, mas o que eu acho fascinante naquela paisagem da região é que mistura de uma forma muito harmoniosa uma brutalidade incrível. E isso para mim é absolutamente violentador do que poderia ser a vida humana e ao mesmo tempo belíssimo. Essa paisagem industrial é bastante fotogénica porque só os edifícios religiosos e os centros comerciais têm aquele tipo de escala. E as fábricas são despojadas de cuidado arquitetónico, é como se estivesse tudo esventrado e aberto, com os órgãos completamente visíveis. E a relação entre as pessoas convive e vive apesar dessa brutalidade toda. É um gesto de resiliência e amor. O Zé foi escrito para representar este gesto e a forma como se prolongam estas questões no círculo da intimidade.

O que é que representam as avestruzes?

Não representam nada, são avestruzes. Tenho alguma dificuldade com metáforas. Depois da discussão entre o pai e o filho (com o pai um pouco aluado, preso a um tempo que já passou, com as armas que estão enterradas há 40 anos) queríamos uma cena de um reencontro forçado por uma violência qualquer, algo que encontrassem e que envolvesse um trabalho de equipa que os aproximasse. Originalmente a cena era com um cavalo enterrado na lama e tinham que o remover dela. Mas foi complicado porque ninguém nos queria emprestar o cavalo. Foi então que, ao filmarmos a cena das armas na ilha do Tejo deparámo-nos com um ovo de avestruz. E foi a partir daí.

Tem novo projetos que possa discutir?

Estou a escrever uma longa passada na África Ocidental, sobre um engenheiro do ambiente que vai fiscalizar a construção de uma estrada e a relação com o que encontra.

*o realizador refere-se ao facto dos dois primeiros episódios de Twin Peaks terem sido considerados a melhor exibição do Festival por um ranking de críticos, ao qual imediatamente se seguiu A Fábrica do Nada.

Entrevista de Hugo Gomes e Duarte Mata

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