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Alain Guiraudie: “o cinema está atrás da literatura na forma de mostrar a sexualidade”

Chamam-lhe provocador e não é por menos. Os filmes de Alain Guiraudie apostam na naturalidade das coisas, inclusive no natural estado em que a sexualidade é traduzida no ecrã. Na Vertical [1] (Rester Vertical), o seu mais recente trabalho que chegou aos cinemas portugueses, conserva tudo o que esperávamos da sua arte. Aquela, que se pode considerar a arte de provocar. Através do seu novo filme, o C7nema tenta desmistificar o homem por detrás da obra.

Novamente se verifica em Na Vertical que existe um certo “eu” cómico nestas tramas?

Penso que o humor é muito importante. O porquê de ser importante? Porque por vezes gosto de rir, e uma boa gargalhada traz uma certa ligeireza ao tom dramático e até mesmo trágico. O humor fundido com o drama é um equilíbrio que procuro com o intuito de interligar as pessoas aos enredos.

A sua filmografia é dotada por inúmeros elementos naturais que por si residem como uma imagem de marca. Estamos a referir os exemplos da água, o rio e outros sistemas fluviais.

A Natureza faz-me sonhar. Aprecio ter um certo cinema sensorial, e para tal uso elementos para o transmitirem, tais como a água, o céu, árvores e o vento. Sobretudo o vento, até porque sigo uma das indicações de Orson Welles: “o cinema é o vento e as árvores“. Sou um fascinado pelo Mundo e pela Natureza em particular, cresci rodeado desta, aliás, em vim do campo, por isso o meu “cinema” possui um certo magnetismo com este meio ambiente. Não sei se conseguiria filmar um filme numa metrópole.

 

Como consegue consolidar esses elementos naturais com a vertente cinematográfica, sobretudo no contexto visual?

Para mim é difícil definir o conceito visual apropriado, porque é igualmente complicado traduzir a grandiloquência da natureza neste filme. Para isso gosto de trabalhar com a luz natural e o Sol é a melhor eletricidade do Cinema. Neste filme aprendi que também a Lua consegue funcionar da mesma maneira que o Sol. Foi a minha primeira vez que utilizei o luar para iluminar os meus planos e a meu veredito é que o brilho desta possui um certo encanto. Um encanto dignamente místico.

Luz natural?

Sim, em todas as sequências exteriores, utilizei somente luz natural. Com a tecnologia é possível reproduzir tal efeito, mas esta é demasiado recente, por isso optei por restringir-me ao luar.

Outra das suas marcas autorais. À semelhança de O Desconhecido do Lago, este Na Vertical respeita um certo signo, onde reside algures uma criatura de que as nossas personagens temem. No caso do seu filme anterior, o siluro, neste são, evidentemente, os lobos. Estes “papões” funcionam como metáforas para algo?

Não é necessariamente uma metáfora. Não é a representação do “papão” nos lobos em Na Vertical, nem a misteriosa criatura do Desconhecido do Lago, mas isso pode muito bem ser induzido consoante a nossa própria interpretação. É possível olharmos para os lobos, assim como o “peixe-gato“, como um medo coletivo, eles existem e as suas auras encontram-se ligadas a fábulas e outras histórias do arco-da-velha, ou até mesmo bíblicas. Sinceramente, olho para estas criaturas e revejo-as num confronto entre a entidade real e as lendas que se encontram ligadas.

Neste Na Vertical, o Alain derruba as “paredes” que separavam a fantasia e a realidade.

Exato, gosto de pensar que o cinema nasceu de algo muito concreto, realista e que aos poucos consegue entregar-nos um efeito mais próprio da fábula, da mitologia e até da fantasia. Tal como os lobos, voltando ao assunto anterior, que possuem esse poder lendário por detrás. Então porque não combinar esses dois terrenos numa simbiótica combinação? Sinceramente, o cinema que detesto é aquele que se foca e que por fim se prende na realidade, e o que exibe é nada mais que isso.

E o conteúdo sexual? O seu cinema é caraterístico por uma naturalidade nesse ramo.

Primeiramente, era algo que tentava fugir. Só que nos últimos anos refleti sobre a importância de exibir ou não exibir esse conteúdo sexual. Porque haveria de não mostrar a naturalidade dessa temática? Perguntava a mim próprio. Se é algo importante para as nossas vidas, porque não mostrá-la no ecrã?

O que pretende com essa procura?

Uma nova linguagem sexual. Por exemplo, quando filmamos, procuramos novas áreas para explorar e no Cinema estamos bem atrás da literatura, na questão de como devemos mostrar a sexualidade.

 Alain Guiraudie entre Raphaël Thiéry, Damien Bonnard e India Harris e Damien Bonnard os atores de Na Vertical

Para si, existe alguma diferença entre o filmar essa nova linguagem sexual e a pornografia? Qual a linha que separa esses dois universos?

De momento é me difícil definir uma fronteira para mim mesmo. O grande obstáculo para mim é realmente encontrar atores que possam levar do início ao fim as referidas cenas, sem recorrer ao uso da simulação. Mas penso que se pode filmar tudo, a questão deverá ser como a filmar. A abordagem no centro de tudo. Mas respondendo diretamente à pergunta, a grande diferença entre a pornografia e o aceitável está nos “point-of-views“. Na má pornografia, principalmente, a câmara encontra-se em ângulos impossíveis e na distância. No cinema tentamos ter uma boa distância, algo que na pornografia, habitualmente, não existe.

Então tenta evitar a pornografia?

Tento evitar [risos].

E quanto às acusações de ser um provocador?

Também não tento provocar, mas constantemente questiono a razão de não poder filmar certas coisas.

Como por exemplo, a sequência em que filma um parto real?

Tento exprimir o ciclo da vida através da edição. E através dessa tento sobretudo expor algum humor, um senso de divertimento que unicamente se consegue na edição. Nesta cena em particular o que faço é demonstrar directamente, no sentido mais literal, frontalmente o nascimento para o público.

Em matéria de edição, pensa que foi eficaz e percetível?

Sinto que neste filme não fui totalmente bem-sucedido, queria dar uma sensação que estava gradualmente a abandonar a imperatividade da montagem, mas julgo que os espectadores não estão cientes perante isso. Como tal, julgo que Na Vertical não consegui atingir o objectivo.

Falando em cenas, existe a sequência final em que surge por fim os nossos “papões“. Como foi filmar essa particular cena? Eles são reais?

Foi uma cena complicada. Os lobos, sim, são reais, e devido à dificuldade desta particular sequência, tivemos que utilizar efeitos visuais em pós-produção, até porque a tarefa era perigosíssima, tínhamos lobos de um lado e cordeiros do outro. Então filmamos os animais em separado e os juntamos através da edição.

O significado desta cena particular ?

É um sacrifício aludido aos contornos bíblicos, uma visão utópica de uma coabitação pacifica. A harmonia entre o lobo e o cordeiro.