Quarta-feira, 24 Abril

Kika Magalhães: “um ator nunca sabe o que pode acontecer com os filmes independentes.”

Um dos filmes-surpresa da última edição de Sundance, Os Olhos da Minha Mãe, revelou uma até aqui desconhecida Kika Magalhães (nacionalidade portuguesa) como uma atriz singular na sua arte da representação, onde através da interpretação de uma assassina chamada Francisca, num filme de forte calibre expressionista, foi considerada uma das 12 breakout performances pela revista Rolling Stone (ao lado de nomes como Lucas Hedges em Manchester By the Sea ou Tom Bennet em Amor & Amizade). Residente nos EUA e de passagem por Portugal, o C7nema teve o privilégio de discutir com a atriz a forma como definiu, em parceria com o cineasta Nicolas Pesce, a sua personagem, as dificuldades de conseguir uma carreira de ator na América e cineastas com quem gostaria de trabalhar, tanto nos Estados Unidos como em Portugal. Toda a entrevista decorreu no Bar 39 Degraus da Cinemateca Portuguesa.
 
Como é que surgiu esta oportunidade e como é que foi para os EUA e acabou com o papel da protagonista?
 
Venho de Vila Nova de Famalicão e sempre quis ser atriz, mas a de ser como profissão demorou, foi um desejo que teve de ser recalcado e, no entretanto, fiz outras coisas. Até que um dia arranjei trabalho como bailarina e foi, enquanto dançava, que senti que pertencia a um palco. A partir daí tornou-se uma obsessão: iria tornar-me atriz, independentemente do que acontecesse. Mudei-me então para os EUA, há 5 anos. Quando cheguei não sabia sequer onde ia dormir naquela noite, não conhecia ninguém e não sabia em que me estava a meter. Decidi estudar numa escola de representação muito boa (a Neighborhood Playhouse) e fui-me infiltrando em cinema independente até que conheci o Nicolas Pesce num videoclip. Depois, ele escreveu Os Olhos da Minha Mãe sempre a pensar em mim para o papel principal. Foi uma sorte tê-lo conhecido num momento crucial da minha vida porque estava mesmo à beira de voltar. Tivesse sido um mês mais tarde, e já teria ido embora.
 
Mas como surgiu esta colaboração?
 
Na altura em que fizemos o videoclip, ele disse-me “Vou escrever algo para nós porque adoro a forma como trabalhas”. Não acreditei. Um mês depois, ele ligou-me a dizer “Estou a escrever isto e acho que és perfeita para o papel. Por favor, diz-me que aceitas”. Encontrámo-nos e ele só tinha 10 páginas do guião escritas. Filmámos uma curta com elas. Depois falámos horas sobre o filme e discutimos imenso a personagem. O guião acabou por mudar imenso.
 
Pois, vê-se que há um certo lado lusitano graças a si.
 
Sim, o facto de haver Amália Rodrigues na banda sonora e o filme ter momentos em que se fala português foi graças a mim. Ele ouviu-me a falar a minha língua nativa e isso abriu um caminho diferente. Quis mostrar-lhe a Amália porque ela fala imenso da saudade e solidão e achei que se enquadrava no filme. Para além disso, há uma cena em que a personagem está a comer arroz de cabidela feita com o sangue das vítimas.
 
 
De alguma maneira trouxe-lhe memórias de cá?
 
Claro. Lá fora é difícil ouvir música portuguesa e nunca como arroz de cabidela. E nunca tinha representado em português, até isso foi espetacular. Podia dizer tudo aquilo que me viesse à cabeça e ninguém saberia o que estava a dizer, o que me trouxe uma certa liberdade. Cada vez que vejo a cena com a Amália fico com uma lágrima no olho porque não há mais Portugal que isso.
 
Creio que se trata da única atriz portuguesa no cinema indie americano. Tenciona continuar nesta linha de cinema mais “artístico” ou pretende mover-se para patamares mais comerciais?
 
Gostava de trabalhar em blockbusters porque traz outra dimensão para um ator, mas nunca vou deixar o cinema indie. Houve uma altura em que se dizia “O cinema indie é o futuro”, não acho que seja o futuro, acho que é o presente. Os bons guiões estão lá. Os blockbusters de hoje em dia são só remakes, sequelas ou filmes de super-heróis. Infelizmente não se aposta em guiões originais porque não querem arriscar, então vão buscar algo que sabem que trará dinheiro. O cinema independente está a crescer e Sundance abre oportunidades a novos realizadores e atores como eu. No entanto, adorava trabalhar com Scorsese ou Tarantino.
 
Falemos agora da sua personagem. Como a vê?
 
Nunca a vi como um monstro, como muitas pessoas a chamaram. Vi-a como a pessoa mais meiga e carinhosa do mundo e todas as ações que praticou, por mais horrorosas que fossem, vinham sempre de um ponto de vista de amor. Tudo o que ela fez achou que o fazia por um bom motivo e por não conseguir encarar o facto de estar sozinha. Ela tem um desespero enorme de se conectar com alguém.
 
 
E como se preparou para ela?
 
Muitas maneiras: entre outras coisas, quando fui para a escola de representação, muitos dos amigos que fiz foram-se embora porque eram também de outros países. Como resultado, isolei-me bastante. Foi nessa altura que conheci o Nicolas porque a personagem estava a passar pelo mesmo que eu. Isolei-me ainda mais e vi imensos filmes que o Nicolas me mostrou: imenso Hitchcock, o Audition do Takashi Miike, Debaixo da Pele, Lars von Trier. E pesquisei ainda mais sobre serial killers.
 
Este não é o típico filme de terror. É bastante expressionista e parece que deve muito ao cinema clássico. Os críticos apontaram semelhanças entre este filme e o A Sombra do Caçador.
 
Sim, mas também O Massacre no Texas, mais pela ausência de violência on-screen. O Ninfomaníaca do von Trier também porque tem muitas partes lentas, nomeadamente com portas a fecharem-se.
 
Mas o resultado final foi aquilo que imaginou?
 
Não. É completamente diferente do que estava no guião. E foi um choque quando o vi pela primeira vez. Era como o Memento, começava no fim e movia-se para o início. Vi-o em Sundance e foi uma surpresa. Para além disso, quando o comecei a ver (e acho que todos os atores passam por isso) só olhava para mim e achei-me horrível, que ninguém me iria perceber porque é uma personagem tão calada e sem emoção, muito quieta. Quando comecei a receber estas críticas da Rolling Stone e afins, fiquei estupefacta.
 
 
Li que faz parte de uma nova companhia de atores…
 
Sim, após Sundance assinei contrato com a Anonymous Content que é uma das melhores companhias de gestão nos EUA e logo aí a minha vida melhorou: saí de Nova Iorque para Los Angeles, tenho uma manager incrível, consegui o green card (Cartão de Residência Permanente nos Estados Unidos) porque o visto que tinha antes era muito limitante, há programas de televisão que nem aceitam pessoas que não têm o green card, o que me abriu muitas mais portas em termos de castings.
 
Falámos há pouco da quietude da sua personagem. Creio que é isso que faz o seu desempenho fantástico. A qualidade dele vem dos olhares, do seu corpo e postura física, talvez devido ao seu background na dança. Foi difícil, ter de representar sem exprimir-se verbalmente?
 
A dificuldade em si foi como em qualquer outro papel: entrar na personagem e ver o que acontece. Sabia bem o que o realizador queria, alguém calado e inerte. Em termos de fisicalidade já me perguntaram se eu planeei o que a personagem fazia, o mexer-me com as mãos, por exemplo. Mas surgiu-me tudo espontaneamente.
 
 
Tem projetos futuros? Li que entrou num filme produzido pelo Gus van Sant e noutro em que interpreta a mulher do Stephen Baldwin.
 
Esses projetos foram filmados antes d’Os Olhos da Minha Mãe e nunca foram para a frente. Sinceramente, acho que não lhes vão acontecer nada. Um deles foi filmado há 3 anos atrás e nunca avançou, o que foi muito frustrante para mim porque tinha trabalhado bastante, mas, lá está, um ator nunca sabe o que pode acontecer com os filmes independentes. Agora estou em paz com isso e encaro como uma preparação para as negações que teria mais tarde. Para além de que se aprende imenso num set de filmagens.
 
Consideraria trabalhar com cineastas portugueses?
 
Claro que sim, adorava. Mas o que quero é fazer trabalho de qualidade. Se tivesse ofertas de trabalho aqui boas, viria sem pensar duas vezes. Sei que há agora realizadores portugueses a fazerem coisas incríveis como o Miguel Gomes, o João Pedro Rodrigues, o Bruno de Almeida ou o Marco Martins.
 
Tem alguns filmes e realizadores preferidos?
 
Imensos, mas se pudesse escolher um filme preferido, seria o Laranja Mecânica. Também adoro O Despertar da Mente. São filmes assim que me interessam, os que nos fazem pensar, muito psicológicos. Relativamente a realizadores, o Tarantino, o Scorsese e o Spielberg.
 
Qual é a principal diferença entre o teatro e o cinema na representação?
 
São animais completamente diferentes. É engraçado porque quando alguém me diz que quer ser ator eu respondo “Queres ser ator, mas de quê?”. O teatro é diferente do cinema, tal como o cinema é diferente da televisão. É importante terem isso definido. No teatro é maior, tenho que representar para o ator na segunda fila me ver, tenho que falar alto, projetar a minha voz, tenho que ser grande. No cinema é o contrário, “less is more” (quanto menor, melhor) porque se for um grande plano, a câmara apanha tudo. E se formos demasiado “grandes” para a câmara, parece falso. O teatro é lindo pela adrenalina, por aquelas duas horas de emoção. Mas no cinema faço todos os dias uma cena diferente.
 
 

Notícias