Terça-feira, 19 Março

Entrevista a Alain Gomis – «A vida é uma aventura impossível»

Vencedor do grande prémio do júri (2º melhor filme) na 67ª edição da Berlinale, Felicité é um drama sobre uma mulher de classe baixa que vive em Kinshasa e luta para poder pagar a operação do filho, após este ter um acidente de moto.

O C7nema teve o privilégio de entrevistar o seu realizador, Alain Gomis, a propósito do mesmo, numa conversa em roundtable com meios russos, alemães e franceses.

Este filme é sobre uma mulher, mas também sobre Kinshasa. Porque escolheu esta cidade?

De uma maneira, é uma cidade que representa o mundo “sem maquilhagem“, onde as relações entre as pessoas são muito diretas e fortes. Há uma espécie de liberalismo cru nela, um capitalismo selvagem derivado da sua estrutura bastante frágil, para não dizer inexistente, que sobreveio da guerra e do colonialismo.

Gostaria de discutir a forma consigo já que se trata de uma ficção que mais parece um documentário.

Pretendo criar, a pouco e pouco, imagens brutas. Deixar que a força do filme resida nas pessoas que filmo. A beleza aparece da forma mais simples no ambiente, sem artifícios e de forma sincera. Mas é um movimento gradual. Começa como uma ficção e avança para uma parte documental.

A atriz Véro Mputu não é profissional. Como a conheceu e como aceitou ela o papel?

Fiz 3 dias de casting e apesar de ela não estar confiante, manifestou grande desejo em entrar no filme. Ela tinha uma grande força e mostrou um grande envolvimento com a personagem, o que me levou a mudar a minha perspetiva dela. Causou-me uma forte impressão.

A forma como se agarra à personagem lembrou-me o Rosetta dos irmãos Dardenne. Foi alguma influência na construção deste filme?

Não. Conheço o filme e respeito o trabalho deles, mas não queria fazer um filme sociológico. Queria entrar na personagem, ver o interior de qualquer pessoa nessa aventura impossível que é a vida. Sobre a maneira de filmar é porque quis manter-me livre, por isso, levei um grupo pequeno e flexível de pessoas. Queria um truque de reportagem, que a minha câmara e a audiência entrassem na zona de conforto e de intimidade da personagem na sua vida quotidiana. Cada dia no set foi uma loucura porque há centenas de coisas que queremos fazer. Mesmo a sequência no hospital. É autêntico e duro. Não tínhamos dinheiro e no filme ouvem-se pessoas a sério a chorarem porque duas ou três vezes por dia alguém morria. Devemos algo a estas pessoas. É por isso que este filme é tão poderoso e intenso.

Li uma entrevista onde disse que “Não ser capaz de amar a própria vida é uma das grandes formas de violência que existe”. No seu filme, apesar da tragédia por que a protagonista passa, ela escolhe ser feliz. É a felicidade uma escolha?

Não acho que seja uma escolha, acho que é uma longa jornada. Não podes dizer apenas “Escolho ser feliz“, tens que deixar que ela venha ter contigo e entre em ti. Talvez num ponto se estiveres pronto a perder tudo, coisas mágicas podem acontecer porque, às vezes, é preciso perder tudo para ver as coisas simples. É o que acontece no meu filme. Ela é uma mulher muito forte, mas de alguma maneira quer-se desconectar da vida. Não é capaz de se deixar ser amada. Muitas pessoas sentem-se assim porque todos os dias os média dizem que a vida não é boa o suficiente. O que não é verdade.

Pode falar um pouco sobre o financiamento do filme e da importância que a Berlinale tem para ele?

Fi-lo com um pequeno orçamento, sem grande eficácia comercial. Daí que seja importante para todos os envolvidos no filme que ele passe num festival como a Berlinale. A indústria cinematográfica é toda sobre o dinheiro e há coisas diferentes quando os filmes são feitos desta maneira. O festival permite mostrar alguma outra coisa. Isto permite a chamada de atenção de outras instituições que nos financiem. Temos de lutar para existir. E é ótimo estar aqui, mesmo que as pessoas se questionem, indignadas, “O que é isto?”. Adorei fazer este filme. Foi um grande compromisso e um enorme prazer.

Notícias