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Apocalipse nos Andes: Salomé Lamas e o seu «Eldorado XXI»

Há exatamente um ano Salomé Lamas passava pela secção Fórum, no Festival de Berlim, para estrear mundialmente Eldorado XXI. As histórias que tinha para contar sobre as filmagens e o local inóspito que escolheu para tal davam um épico. Rinconada, localizada nos Alpes peruanos, é a cidade mais alta do mundo.

Mais que isso, é uma terra sem lei, povoada por pobres andarilhos numa moderna corrida do ouro que vão dar a um local repleto de crimes, com um poder público quase ausente e um policiamento mínimo. Na área da saúde as coisas não são melhores: não há saneamento básico, água potável e os riscos de contaminação são elevados. E de médicos… só existe um. “A Rinconada foi criada da miséria humana”, diz Lamas.

Neste cenário, a equipa de filmagem, que tinha de viajar pelo menos duas horas por dia para chegar na sua locação (a polícia não garantia a sua segurança durante a noite), passou pelas mais diversas atribulações – principalmente devido ao clima inóspito.

Nesta bela entrevista para o C7nema, a realizadora de Terra de Ninguém [1], que volta a Berlinale em 2017 com Estado de Graça, contou pormenorizadamente todas as suas peripécias sem preocupações com o tempo – para o infortúnio da sua “press agent” que tentava coordenar a sua agenda. Dado o interesse da história, ficam na íntegra os quase 40 minutos de conversa.

O filme estreia nas salas portuguesas nesta quinta-feira (09/02).

O Terra de Ninguém baseava-se num único personagem e em poucos cenários. Aqui o alcance é completamente diferente, com filmagens numa terra longínqua e uma maior produção envolvida.

O Terra de Ninguém tinha aquele dispositivo porque o filme pedia aquele dispositivo. O Eldorado XXI tem esta estrutura porque aborda outra história, outra realidade. É algo que tem a ver com identidade de cada obra e cada obra comunica a sua forma, chega-se a um determinado momento em que uma determinada estrutura parece a única indicada para o filme.

Mas a produção foi maior…

Sim, foi a única situação em que eu rodei com alguns recursos, o filme é uma coprodução portuguesa e francesa, com apoio do Eurimages. Também teve o ICA, o CNC, associado a Tango Filmes no Peru. A Som e Fúria foi a casa do filme. Claro que não há paralelos com os apoios obtidos por grandes ficções, com grandes nomes, franceses ou alemães.

Quanto tempo duraram as filmagens?

Foram cinco semanas no Peru. Já tínhamos ido lá antes, eu mais duas pessoas da produção – três mulheres que despertaram muita curiosidade – até porque Rinconada tem uma sociedade muito machista. A questão de género é muito grande. A população também desconfiava, pois está saturada de jornalistas que vão para lá um par de dias e saem de lá pintando os piores cenários.

Porque vão lá?

Porque é um sítio cheio de problemas. Claro que isso também está no meu filme, é o subtexto, mas nunca foi a minha intenção fazer um drama social. É um povoado com problemas de tráfico humano, prostituição, contrabando de género, de ouro, com graves questões sanitárias, crendices que levam a atos criminosos e com muitos indigentes. É um lugar para onde vai muita gente porque ninguém pergunta de onde vens.

Estamos a falar de uma terra sem lei, um local onde há um posto de polícia que recentemente foi instituído mas onde os agentes são rotativos, ninguém passa lá muito tempo e são rendidos por outro. Eles têm medo, frio e altitude desgasta o corpo o humano e cria um sem fim de questões médicas. Podemos começar pelas constipações porque o clima muda durante um dia onde há sol e começa a nevar e há variações de temperatura muito grandes.

E você, por que decidiu fazer um filme sobre a Rinconada?

O meu fascínio não tem a ver com o Peru, mas por locais que sejam desconhecidos e, de alguma forma, excepcionais, marginais, de fronteira, que seja difícil fixar ou descrever. São “não-locais”, terras de ninguém.

Diante das condições gerais, como foi a adaptação da equipa de filmagem?

Foi uma rodagem onde toda a equipa vai ter como memorável nas suas carreiras. A começar por esta parte, da saúde, nas infeções que estão na comida. Não há água, não há infraestrutura nem saneamento básico, não há casas de banho. Também não existem nem esgoto nem recolha de lixo.

Alguma vem de um lago, tem que se comprar e, mesmo assim, é preciso ter cuidado com a sua origem. Ela não é retirada apenas do glaciar que está junto da cidade, mas também de locais contaminados com mercúrio – que é altamente tóxico e utilizado numa forma muito rudimentar de mineração. Além disto, há os gases que saem das chaminés para a atmosfera.

Estamos a falar de um local, que também é visível no filme, cheio de lixo, tem uma lixeira a céu aberto. Isso é comentado no filme – quando se diz que se fossem aquelas temperaturas estaríamos numa situação de epidemia.

Já o médico local, o único que existe, não distingue uma emergência de uma urgência porque há um único profissional para uma comunidade flutuante que pode chegar às 80 mil pessoas. Ele não pode estar 24 horas disponível para uma facada, para uma situação que não seja de vida e de morte – mas continuam a ser urgências onde qualquer possível correria para um hospital. E mesmo que a pessoa seja salva naquele momento, o mais provável é que ela morra numa ambulância a caminho de um centro medico.

Portanto é normal que a comunidade esteja cansada deste movimento por parte dos jornalistas e desta exploração das suas condições de vida.

E as instituições públicas? O filme mostra um processo eleitoral…

Existem instituições e organizações autárquicas. Mas é um país altamente corrupto. Houve uma vez que vi algo curioso – um representante regional a dizer que o problema da Rinconada não era dele e que devia ser tratado a nível nacional, na Assembleia.

E aí a distância é enorme: Rinconada fica já na fronteira com a Bolívia, por trás das montanhas e da selva. São muitas horas de voo e sequer há aeroportos próximos.

Terra de ninguém, como disse…

Sim. A Rinconada é o lugar mais alto do mundo, é impossível um ser humano, por razões biológicas, estabelecer-se a uma altura maior que aquela. São 5500 metros de altitude, equivalente ao campo base da escalada ao Everest. Clinicamente, a partir dos 3800 o corpo sofre uma série de processos devido à altitude que são muito difíceis de prever de organismo para organismo. Havia esse risco por parte da produção, de chegar lá acima e perceber que não conseguiríamos trabalhar. Há pessoas que não conseguem. Até pode ser dar um edema cerebral ou pulmonar – por isso tínhamos garrafas de oxigénio às quais membros da equipa recorreram em determinadas situações.

Foram cinco semanas muito duras, estávamos há duas horas de caminho, numa aldeia com um pouco mais de condições. Não era permitido pelas autoridades locais ficarmos lá, pois os policiais recusavam-se a entrar em determinadas ruas por causa da violência. No fundo não há crime organizado, não há cartéis, mas as pessoas não saem de casa à noite. As mulheres, definitivamente, não saem.

Os próprios motoristas, que eram peruanos e já tinham estado no Paris Dacar, desistiram porque nunca imaginaram que a estrada era tão perigosa de se conduzir – para não falar das histórias de assaltos e homicídios. Houve alturas em que só conseguíamos trabalhar mediante suborno e com agentes armados a fazer escolta – o que me colocou sérios problemas éticos.

Foi uma rodagem impossível de planear, de ter um calendário, tudo era mutável num sítio onde as pessoas um dia estão ali, no outro ninguém sabe delas. Era quase como ter de reescrever um filme novo todos os dias, não se podiam fazer compromissos. E se pode chegar àquele momento terrível, quando já se vai no plano Z, onde começamos a ver o risco de sair de lá sem nada e encerrar tudo, mandar a produção embora.

Isso aconteceu?

Sim, aconteceu várias vezes. Houve uma vez que pensei seriamente nesta hipótese. O filme deve muito ao Luís Urbano, o produtor, que não só bancou como triplicou a aposta.

Optou por dividir o filme em duas partes bastante distintas. O áudio, predominante na primeira parte, é que realmente dá conta dos aspetos ruins. “Lá fora” você mostra casamentos, festas, parece uma aldeia normal.

Estamos a retratar um sistema de corrida ao ouro como o do final do século XIX, mas no tempo contemporâneo. Ele é dominado pela indústria mineira, que é muito artesanal, informal – e Eldorado XXI reflete isso. Como disse, nunca quis fazer um drama social, quis fazer mais perguntas do que dar respostas. Vem daí o movimento do filme, tentar mostrar aquele local e aquelas pessoas, mas é preciso que haja esse trabalho do espectador de querer prosseguir essa viagem. Há uma ideia de um pseudo díptico, que é dominado por um falso plano-sequência.

E depois deste esforço todo… Berlinale. É a sua segunda vez aqui.

Sim, é excelente, especialmente para A Som e a Fúria, que chega aqui com duas produções difíceis rodadas quase em simultâneo (* a outra foi Cartas da Guerra [2]). Acho bom para que estas e as outras produções portuguesas demonstrem que esse é um cinema que precisa ser apoiado em Portugal, a cultura tem que ser estimulada.