Quinta-feira, 18 Abril

No banco do jardim com o culpado por «Holocausto Canibal»

Uma esplêndida noite de setembro em Lisboa. Atrás de nós as “falanges terroríficas” dirigem-se ao cinema São Jorge para as sessões do Motelx; à nossa frente, entre a visão dos carros e do teatro Tivoli, do outro lado, sento-me num banco da Avenida da Liberdade com Ruggero Deodato, o homem que inventou Holocausto Canibal, exibido na noite anterior, um dos mais longevos atentados ao bom senso e à hipocrisia da história do cinema.

O filme conta a história de um antropólogo que se dirige à Amazónia à procura de um grupo de quatro aventureiros que por lá desapareceram um ano antes. O objetivo destes últimos era penetrar no “inferno verde” até lugares nunca visitados pelo homem – e onde viviam terríveis tribos canibais. Este foi um dos primeiros filmes a valer-se do found footage – recurso popularizado quase duas décadas depois pelo Projeto Blair Witch. Aliás, lembrar desta fraude torna ainda mais “saboroso” o encontro com o que este filme oferece…

Quem são os canibais, afinal?

A nossa rápida conversa envolveu a sua participação no festival e, obviamente, aquelas questões que o homem de 77 anos responde há muito, muito tempo…

E vai continuar a responder: durante a sessão Deodato foi atacado verbalmente por membros do público do Motelx a propósito, outra vez, da crueldade contra os animais – num filme de resto famoso pelos empalamentos, violações, esfolamentos, agressões com paus e pedras pontiagudas e, claro, canibalismo – com consumo à bruta, sem cozinhar nem temperar. 

Para justificar a ementa e o picante da iguaria, o filme também apresenta uma história paralela onde o antropólogo questiona a insaciável voracidade por sangue dos media e do público que o consome – um comentário sobre a sociedade contemporânea que culmina com o célebre “quem são os canibais, afinal?”.

O rei das monstruosidades

Mas, antes disto, começo por perguntar ao cineasta porque, depois de 36 anos, continua-se a falar em Holocausto Canibal, um feito notável quando o cinema em geral, o de terror em particular, já experimentou todo o tipo de monstruosidades…

Sim, é incrível. Eu revi o filme e ele parece-me novo, como se tivesse sido feito ontem. A longevidade deve-se ao facto de que, se o filme é velho quando se trata de uma história de canibais, é novo quando se faz um paralelo com o mundo da agora – com as guerras, as mudanças climáticas, o desaparecimento das florestas… Estes acontecimentos sustentam a longevidade do filme”, teoriza.

A arte de chocar e enojar à italiana

A linhagem de Holocausto Canibal remete aos “Mondo Filmes”, invenção italiana que, nos anos 60, correu o mundo exibindo “achados antropológicos” nas mais diversas regiões do globo com um objetivo bastante explícito – chocar e enojar as audiências (e fazer dinheiro, claro). Já nos anos 70, os descendentes de Nero e Calígula competiam com os norte-americanos em ultra-violência no cinema – quando os italianos se especializaram no subgénero dos canibais.

De facto”, diz Deodato. “Era muito comum em Itália que, quando um filme tinha sucesso, uma série de outros vinham logo a seguir. Aconteceu quando Sérgio Leone inaugurou o western spaghetti, Pasolini fez o Decameron ou Mario Bava no género horror. Não foi diferente no caso dos filmes de canibais”.

Homem mata o filho com instrumento que usava para cortar carne

No dia seguinte à entrevista passo por uma sala de espera repleta onde um programa de auditório da TV aberta promove uma “investigação criminal” com o seguinte título – que nunca abandona o ecrã: Homem mata o filho com instrumento que usava para cortar carne”.

Não entendo por que a realidade é consumida passivamente num programa vespertino enquanto Holocausto Canibal choca muita gente. Deodato também não. “Às vezes pergunto à audiência sobre isso, mas eles não conseguem explicar. Penso que a ficção é muito mais forte do que a realidade – pelo menos no caso de Holocausto Canibal. Talvez os filmes sejam mais fortes por causa das possibilidades de se trabalhar o material através da montagem, da música, da imagem”.

De resto a mensagem do filme continua mais atual do que nunca. “Eu odeio os media. Odeio quando há um terrível acidente, com 200 mortes, e eles vão lá entrevistar o pai que perdeu um filho e perguntam ‘como você se sente’? Vão se f*!” (risos).

Tartarugas e galinhas: “eu amo os animais!

Numa das cenas icónicas e, deve-se dizer, realmente difíceis de “engolir”, dois homens arrancam da água uma tartaruga gigante e a esquartejam impiedosamente numa demorada e explícita sequência. “Na selva isto é normal”, defende-se o realizador – que já sabe que estamos no famoso terreno das acusações de “crueldade contra os animais”.

Eu já disse tudo sobre isso, tenho explicado isso durante 36 anos. Além disto, qual é a diferença entre isto e matar uma galinha no quintal? Eles, no filme, também comeram a tartaruga! É estúpido ter de explicar isso. Sou velho e já vi coisas assim, mesmo no meu país, muitas vezesEu amo os animais! Além disto, já vi muitos realizadores de blockbusters fazer isso e os críticos dizem ‘ah, que bonito’! Já o Deodato é ‘isto e aquilo’! Eu não entendo” (risos).

Ma che cazzo! Umberto Lenzi non!

Deodato está muito habituado a responder diplomaticamente a acusações de hipocrisia e de crueldade com animais, mas fica furioso quando se fala no seu conterrâneo Umberto Lenzi e até abandona o seu inglês macarrónico. “Ma che cazzo, sempre Umberto Lenzi! Ma per che? Non posso piú!” (risos).

Para os pouco conhecedores do subterrâneo reino das atrocidades da exploitation à italiana, Lenzi foi outro entusiasta das marchas pela selva a dentro à procura de.… enfim, selvajaria. Mas Deodato não gosta dele? “Não é isso, é um bom diretor para filmes de aventura, mas quando faz imitações de filmes de canibais ele é péssimo. Eu preparo os décors, ensaio os atores, os índios… Sou completamente diferente. Diferente!”.

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